Odes ao amor e à vida enfeitam terças, segundas, a semana inteira. O canto da terra frutifica versos em estrofes. Fazer listas é tal qual efeito rarefeito, nunca de suspiro fácil. Por isso, algumas das poesias goianas em poemas, elencando títulos e nomes que têm feito, da história, estória. Tarefa que requereu ajuda. Recomendações. Façam as suas. Ei-los:

Foto e texto de abertura: Yago Rodrigues Alvim
Texto de abertura e foto: Yago Rodrigues Alvim

Ofício de viver – Afonso Félix de Sousa

O mundo que encontrei já era isso.

O jeito foi bordá-lo

com palavras.

Palavras e palavras, esta a herança

que tive e vou deixando.

O jeito foi juntá-las

untá-las

soprá-las

dobrá-las a meu jeito

Perdão ó mestres

vos dou a mão à palmatória

mas não sei ser outro, não sei

ser de outro jeito.

O mundo é isso

e o jeito é ir chutando e vou chutando

e vou driblando e vou sendo driblado

e vou caindo e vou-me erguendo e vou

e vou gemendo

atrás da bola

e a bola à frente

e ao lado a bola

e do outro lado

e nas alturas

Mestres

meus mestres

 

Toque de Flauta – Delermando Vieira

Um velho tonel de vinho

é o que tenho,

ali debaixo do pessegueiro florido,

na vesperal animosidade.

Por isso, assim, este beber

e não tocar-me, se é flauta o que me toca,

quando me toca esta saudade.

Eu sinto, ouço, vislumbro nos aros

da tempestade: é longo este soar de sinos,

quando meu amor lá longe já morreu.

Quem foi que tanto me buscou e me perdeu?

Não sei. Sei apenas

que todo buscar

(adaga/florferida)

é um sarilho arrastando a Vida.

Todo buscar faz de seu achado

alguma antiga e perdida ternura.

Portanto, me busco

e não me acho,

por tanto achado

e pouca procura.

Que sou?

a que vim?

Que amor terá de mim o sangue,

a libido, a navalha e sua ferrugem,

se meus lábios

(sempre tardos)

nunca insurgem?

Confesso: um cavalo de ouro trota, agora,

no epidérmico jardim de minha pele,

o rúbido bouquet de orquídeas

entre os dentes de alvura acetinada.

Relincha em ouro este cavalo

que enfim no meu peito empina, escoiceia,

bate os cascos contra as pedras

da enorme solidão: de amor,

quantas léguas tem meu coração?

Um velho tonel de vinho

é só o que tenho,

enquanto – na paisagem embriagada –

toco o soluço de uma flauta esmagada.

Por isso, então, nunca beber-me

aquele amor distante,

nunca querer-me a pessoa amada!

 

Alvorada dos nirvanas – Edival Lourenço

estou pela hora de cometer

um haraquiri com o gume

das palavras

estou a ponto de sofrer

um estouro de aneurisma

na jugular poética

 

Geração – Gilberto Mendonça Teles

Sou um poeta só, sem geração,

que chegou tarde à gare modernista

e entrou num trem qualquer na contramão,

e vai seguindo sem sair da pista.

A de quarenta e cinco me tutela,

me trata como a um filho natural.

Eu chego às vezes tímido à janela

mas vou brincar no fundo do quintal.

Na poesia concreta, a retaguarda

é que me vê brincando de arlequim.

Às vezes fujo à rima e lavo um fardo

de roupas sujas, não tão sujo assim…

A de sessenta e um foi de proveta,

foi mágica de circo para um só.

Ninguém me viu caçando borboleta

ou pescando escondido o meu lobó.

Quem fez letra, cantou e usou bodoque

que se fez marginal pela cidade,

será que fez poesia ou fez xerox

ou apenas tropicou na liberdade.

 

Sem Título – Heleno Godoy

Adentrar a casa, pelo

portão: pórtico finca-

do entre grades, gran-

de o muro em torno;

entre o porão e o ático,

a casa se estende e se

protege: um projeto ou

uma proposta (a porta

a ser fechada), a casa se

constrói no que acumula

— um cedro no jardim e

outro na sala, cortado

e revestido; como o musgo

a recobrir a casa e seus

súditos: um súbito susto,

de medo — sua medida.

 

Poema vertical – José Décio Filho

Dei um mergulho em mim mesmo, num pulo de cabeça a baixo.

Tudo lá no fundo está quieto como os caminhos abandonados;

a paisagem esfumou-se e confundiu-se num apaziguamento de cansaço.

Perdi-me nos atalhos sedutores,

gastei linhas retas e curvas, inquietações e deslumbramentos.

De místicas visões e amargos projetos fiz um montão de cadáveres.

Quanto trabalho perdido,

quanto tempo dissipado!

Mas de tudo que ajuntei

na mais lírica desordem,

alguma coisa houve de ficar, alguma coisa que às vezes se resolve em minha poesia ou em silêncio.

 

Poema – José Godoy Garcia

Eu queria informatizar a minha práxis poética

gostaria muito de ter ao meu dispor um Computer

Place, a tecnologia Epson, Action Laser 1000,

o Desktop,

Seria maravilhoso computar as estrelas

Que estão à minha disposição na hora exata

de minha criação

Gostaria de medir a pressão de meus órgãos

Quando em minhas mãos um Macintosh Centris

ou um Windows, e poder pegar uma loira baiana

com toda serenidade.

Sim, enfrentar uma baiana loira só com

um Macintosh, essa raridade beirando à

desídia de uma negra aça.

Sim, e que a madrugada venha para

o meu alento macho, sempre ao meu lado

uma bela tecnologia Windows NT,

assim poderei saber o útero perfeito

e sua extremidade quanto a madrugada se

abrir em coxas verdes-escuras-negras-grénas

e aças, medindo a pressão e repressão sub

reptícias em torno da Petrobrás. Oba!

Nova Scanner Geniu tem soft poliglota, um avanço!

Guimarães Rosa, em alemão, série verbegral-quicé.

Uma atrociadade de línguas suaves-lânguyidas,

as imagens Leyser de Bruna Lombardi de mel

e de flores brancas. Oh, meu santo Virgolino,

Santa Dica de Goiás, paixão de minha alma,

oh conselheiro, oh Zumbi dos Palmares!

O primitivismo nativista no bico dos

anjos da máquina infernal que nos digita

os sêmens, as porras micras, com uma

doce atenuante: os estilísticos teriam

um fim, até que enfim, salve nossas preces

ao Nosso Senhor do Bonfim, o Windows digitaria

as frases e períodos, no mágico de um

simples botão Reader Baby e

soletraria a estética num simples segundo

de nossa vidinha. Salve o Microsoft Windos NT,

infinito, oba-oba, lésbico!

 

Goyania – Manuel Lopes de Carvalho Ramos

Canto primeiro

Eu canto, patria minha, o heroe facundo

Que immortal sublimara aquella idade

Em que o Brasil, sonhando a liberdade,

Cingia as vestes do nascente mundo;

Em que da Historia, irmã da humanidade,

Tinha o gigante audaz o ser profundo,

E aquelles que, nos bosques brasileiros,

Foram os grandes cayapós guerreiros.

O’ tempos idos! O’ remotas eras!

Em que, á sombra das arvores copadas,

E das montanhas para os céos voltadas,

Eram outras as nossas primaveras!

Em que das selvas brutas e agitadas

Eram selvagens os irmãos das feras,

Em que a voz do cacique, ardente e bella,

Soía um brado ser da eterna tela.

Eras tu, patria forte, o grande povo

Embalado no bosque americano,

Não de escravos nascido ao eito insano,

Mas de algum ventre poderoso e novo;

Que então não tinhas outro soberano

Senão esse fortissimo renovo,

Mas que o perdeste á marcha triumphal

Dos bravos, que illustraram Portugal.

Eras tão livre como a voz dos ventos,

Que as tuas alvas praias despertavam,

Como a orchestra das aves, que esperavam

Da aurora os raios fortes e opulentos.

Ousado prometteu, que em ti buscavam

Nações da Europa, espiritos sedentos,

E estranhos, feros, cegos desertores,

E escravos negros de crueis senhores?

Em tudo a voz da terra esperançosa

Mil phantasticas sombras attrahia;

Em seus prados uberrimos nascia

Forte imburana ao pé de branca rosa;

Em seus valles risonhos, quando o dia

Na luz d’alva acordava a tribu irosa,

Eram lagrimas doces, purpurinas,

As lymphas das ribeiras crystallinas.

Mas em ti, só em ti, goyana terra,

Correia pertinaz ouvira o brado

Firme, soberbo de um paiz talhado

Para os fructos da paz, e não da guerra;

Porque em ti se firmava o luso errado,

Vingando as regióes de serra em serra;

Porque em ti, se não fosse a idade forte,

Teria a própria liberdade a morte.

Mas, por isso, bem vês, goyano povo,

A quem meus versos neste canto envio,

Que imagens vagas de paixão não crio,

Mas a gloria da patria em que eu me louvo.

Em teu regaço, em que melhor me fio,

Deponho a lyra e o canto audaz e novo:

Dá que a musa, animando a luz da historia,

Da patria cante a primitiva gloria.

[…]

Canto Vigésimo

[…]

Eis nesse instante, enquanto gloriosos

Os valles descem fortes os guerreiros,

Da fria noite os astros derradeiros

Iam doirando os ermos tenebrosos.

Scintillam sobre os cerros altaneiros

D’alva os clarões rosados e amorosos:

A doce brisa a pluma dos cocares

Agita aos buritys nos frescos ares.

Algumas aves cantam nas ramagens

Dos cambuhis da praia, em que serena

A laranjeira delicada e amena

Presta aos indios amantes as folhagens;

E, ouvindo aquella matutina pena

Do cardeal, que canta nas pastagens,

Anhangaia murmura: Anang morre…

Fria mão de Tupan seu rosto corre…

Morrer! Quando esta vida é toda amôres!

Quando, entre as rosas da manhã serena,

Suspira a jurity na selva amena,

Adeja o beija flôr beijando as flôres!

Morrer! Da ideia negra que envenena

Ao precipicio caminhar de horrôres!

No coração, que a treva desespera,

Ver extinguir-se a luz da primavera!
Morrer! Quando a folhagem que murmura

Presta suave sombra ao doce amado!

Quando brilhante o leito do noivado

E’ como um cofre aberto á formosura!

Quando sómente o enfermo é desgraçado!

Quando escarmenta o colhe a sepultura!

Deixar tudo e partir… Cahir sosinho

Cadáver! Sombra! Em meio do caminho!

Taes pensamentos negros scintillaram

No cerebro da indígena piedosa,

Cuja paixão suprema em dor penosa

Idéias mil oppostas transformaram.

Turva-lhe a vista gfelidez pasmosa

De Anag… e os passarinhos se calaram…

Naquelle instante aspérrimo e sombrio

Nem brilha mais o céo, nem falha o rio…

Era supremo o acaso, a dôr terrivel,

E findo estava o quadro da agonia:

Sem forças quasi a indigena acolhia

Aquella vida á margem do impossivel:

E assim, olhando a face quase fria

Que estreita, com disvello intraduzivel,

Guayra ri, soluça, e a voz discerra:

– Morto! Morto! – Suspira e cahe por terra.

 

Praia Morta – Miguel Jorge

esta praia morta

também é fruto do rio

cemitério de gaivotas

com seus ais

e nunca mais

esta praia morta

viajou horizontes

e se matou pelo rio

esta praia plana

esta praia plena

de triscos

ciscos

cacos

cascos

bicos

riscos

triscos

rabiscos

beliscos

reflete agoniando

a orla vermelha do rio

esta praia abriga vozes

abriga falas

e se cala

como quem perdeu a última palavra

 

Vaga litúrgica – Pio Vargas

O volume da chuva

é que decifra o dilúvio

como no corpo eflúvio

é âmbar a dúvida

a porta que mais vence

é a que aberta permanece

e o corpo que mais sente

é nem sempre o que adoece.

Que morte é natural

senão a que é sem leito

se nem só pelo sinal

traduz-se o que foi feito (?)

o que por dentro queima

e teima em prosseguir

o fôlego-fátuo que anuncia

cenas do óbito a seguir

Vai mais longe quem divaga

além de si aquém do se

a certeza que mais propaga

é a de quem menos disse

nenhum lugar pleno existe

a menos que a invenção o faça

: o perdão é de quem insiste

no pecado e não na graça.

 

Pacote Completo – Cássia Fernandes

Quando a gente ama,

compra o pacote completo:

o bilhete de ida e sem volta,

a ex-sogra,

o mau hálito quando acorda,

o mau humor

o mau amor.

A gente ama,

a gente compra

o pacote com tudo o que vem dentro:

um trem, uma família, um cachorro,

um papagaio, um sofrimento.

O feijão com caruncho,

a pedra…

A gente quase quebra um dente

quando morde.

A gente não pode

comprar uma meia meia,

uma meia sola,

só o seio esquerdo

e deixar na loja

uma só alça

do sutiã meia taça.

Comer só o miolo do pão

e do sonho de valsa;

a laranja e a couve;

e fingir que não houve

nem escravidão, nem fome, nem chicotada,

nem o pé de porco

na feijoada.

O amor não se vende avulso

nem picado,

para um pé atrás,

de um só lado.

Se bem que é bem preciso

começar com o pé direito,

dar ao menos um braço a torcer

e de vez em quando estender

a roupa no arame

e a outra face.

Porque a qualidade e o defeito

são irmãos siameses.

E o cachorro se senta

sobre o próprio rabo.

Bicho de goiaba é goiaba,

exceto para quem está

de barriga lotada.

Quando a gente ama,

não pode escolher

se tem aleijão

ou se é perfeito.

Tem que aceitar a barriga, a remela,

o cabelo de nego,

o presente de grego,

a mão em que sobra ou falta

um dedo,

e que é a pimenta da vida

e que dá tempero à comida.

Não há amor que se vende a granel,

como fiado

só no armazém ao lado.

E se é verdade

que a galinha da vizinha

é sempre mais gostosa e mais gordinha,

é verdade também

que não se faz omelete sem quebrar uns ovos

chocos

e que todo ofício,

mesmo o de você me comer

e de eu comer você

tem seus ossos.

 

As Jóias de Netuno – Valdivino Braz

Surdo rumor de ondas se avoluma

para os estrondos de espuma;

estilhaços da fúria fragmentária,

os cristais feito jóias,

perdigotos de Netuno.

Fraturas de oceano,

salso cuspe de espuma e louça

os nácaros, côncavos destroços.

O que há de maestro e música,

além do bramor de mostro,

nisto de Atlântico.

Sinistra massa, mista

de crustáceos e moluscos –

lagostos pednúnculos de antênulas,

cacos de acéfalos hipocampos,

espongiários espantos.

De hábitos solitários e anêmonos,

de celenteradas pedras,

isto de florir-se

o reino das actíneas.

Outra é água-viva,

mija-vinagre,

urtiga-do-mar,

isto de queimar.

Transparência de gelatina,

e de secreto nas entranhas marinhas,

as coisas-meduas,

tanto quanto não ser

a vida um mar de rosas.

Umas formas eriçadas,

uns ouriços,

uns crespos de abrir-se e fechar-se

– de não-me-toques -,

marinhos espinhos.

E coisoutras peludas,

isto análogo de púbis,

estranhos novelos de quelíceras.

Uns mijos de esponja,

de Nadja,

de nojo.

Umas pérolas nada pérolas,

num colar de búzios.

Com a fileira de pés ambulacrários,

A esdrúxula estrela,

uma crosta, uma casa,

parece que morta.

Vergue-se-lhe, entanto, o centro,

ei-la que ressuscita:

ondula-se o mar de áspero dorso,

onde varetas possibilitam

articular-se o dentro,

e pena é vê-lo ondular-se,

por certo que de dor,

isto de só restar devolvê-lo ao mar,

arremessa-lo feito disco voador.

 

O desvio – Yêda Schmaltz

A mim pouco me importa

aberta ou fechada a porta,

vou entrar.

E pouco me importa estar

sendo amada ou não amada:

vou amar.

Que a mim me importa tanto

eu mesma e o sentimento,

quanto!

A mim pouco me importa

se a tua amada é doente,

se a tua esperança é morta.

E me importa muito menos

se aceitas solenemente

a nossa vida parca e torta.

Porque a mim me importaria

deixasse de ser eu mesma

e a poesia.

A mim pouco me importa

se a lira quebrou a corda:

vou cantar.

E pouco me importa estar

no picadeiro do circo:

vou rodar.

Que a mim me importa tanto

eu mesma e o sentimento,

quanto!

A mim pouco me importa

se estamos todos presos

por uma invisível corda.

E me importa muito menos

sermos todos indefesos

ante o destino que corta.

Porque a mim me importaria

deixasse de ser eu mesma

e a poesia.