O voo do Espécie, de Valéria Braga e Rodrigo Cunha, pelo mundo
08 novembro 2025 às 21h00

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Cida Almeida
Especial para o Jornal Opção
Teatro é espaço de magia e encantamento, onde coisas misteriosas acontecem, não apenas no palco, mas no coração de cada espectador. Quando as luzes da ribalta se acendem, o mundo lá fora se apaga e cortamos os fios da realidade para viver uma experiência que mobiliza emoção, memória e fruição.
Agora, imagine a experiência de um mergulho profundo na escuridão e no silêncio do espaço, não só do teatro e do palco, mas de nós mesmos, beirando o retorno à caverna, um mundo sem linguagem verbal. Assim, como se estivéssemos nos primórdios da humanidade, com uma luz incerta a ferir e acordar nossos olhos para flashes, cenas de um corpo em frenética metamorfose, às vezes bicho, dos mais diversos bichos, às vezes homem, mulher nascida do caos do futuro que nem foi vislumbrado ainda, abismos de montanhas e oceanos, respiração, pulsar da vida.
O suor humano sulcando e pigmentando as paredes da caverna, um princípio de linguagem, de registro. Tudo isso em um corpo solitário, que se contorce, desfigura e configura, subverte músculos e sentidos. Isso é o Espécie, o teatro físico de Valéria Braga e Rodrigo Cunha, feito em Goiás, e que ganha o mundo num diálogo de amplas possibilidades com outras culturas.

Conheci o Espécie em 2022, espetáculo com 12 anos de trajetória e beirando 150 exibições no Brasil e exterior. É a mais longeva e desafiadora peça teatral goiana. Assisti a um ensaio e duas apresentações. É uma experiência que não se repete, pois as vivências que o ator Rodrigo Cunha suscita no espectador são de tirar o fôlego e o chão. Angústia, medo, deslumbramento, incredulidade. São tantos estados emocionais provocados, que cabe a pergunta: Que show da Xuxa é esse, meu Deus? Ou melhor, que show da Xuxa não é esse, meu pai? É uma coisa que nunca vi, por isso a vontade de ver e ver de novo, sempre mais uma vez, viver esse momento de encantamento teatral. Difícil descrever essa experiência, que escapa a todas as palavras, porque quem fala é o corpo em cena e o silêncio do corpo-plateia na escuridão.
O jeito diferente de fazer teatro materializado no Espécie é resultado da simbiose entre os processos criativos de Valéria Braga (atriz, diretora de teatro, cinema e tevê) e do ator e bailarino Rodrigo Cunha. Inquietos, irreverentes e disruptivos, os dois têm uma química perfeita, fruto de décadas de parceria e convivência artística. Ele sempre disposto a ser o barro virgem das voláteis criaturas, a zerar tudo, as conquistas, os prêmios e o sucesso para se entregar ao inusitado, ao que está por vir sob a direção de Valéria Braga, que se arrisca em todos os desertos em busca da água viva da criação.
Nesse processo de profundo atrito com a pedra bruta da realidade da qual falava Drummond, nasceu Espécie e tantos outros espetáculos e filmes da dupla (Origens, que destacou a questão dos refugiados; Hábitos Noturnos, uma reflexão sobre a insônia em tempos de pandemia, com a participação do coreógrafo e diretor uruguaio Hugo Rodas, falecido em 2022; Bodas…). Valéria vem de uma trajetória de sucesso na tevê e no cinema. Na parceria com a cineasta Tizuka Yamasaki foram produzidos vários longas-metragens. Também foi a preparadora de elenco da série As Brasileiras (Rede Globo/2012), projeto idealizado e dirigido por Daniel Filho. Rodrigo Cunha tem no currículo vários prêmios, um dos quais pelo Dúplice, uma parceria com Rodrigo Cruz.

Para a concepção do Espécie, que surgiu de um desejo expresso de Rodrigo Cunha fazer um monólogo, Valéria propôs e ele topou na hora: três meses vivendo numa casa em total silêncio e escuridão, até o limite da exaustão, vivenciando os movimentos do corpo e da respiração. A tudo isso soma-se um tempo de observação aos bichos do zoológico. Então nasceu a pergunta norteadora, quem observa quem? E o diabo do celular, que atravessava o dia do ator com suas conexões, também foi cortado, restando apenas a luz insidiosa da sua lanterna. E assim, tcham-tcham-tcham, fez-se a luz do Espécie. O teatro em blackout e o ator, imerso nas cenas em profunda metamorfose dissociado também na difícil função de ser também o iluminador.
A luz mínima da lanterna de um rudimentar celular desenha as cenas: um gigante se faz luz, uma baleia na imensidão do mar a plenos pulmões, montanhas que se elevam e cavernas que se aprofundam no relevo do corpo, fogueiras extintas que se reacendem, bichos que brotam da floreta da pele, chamas e rostos que aparecem e se apagam no instantâneo da vida, arquétipos e ancestralidade reverberando no presente.
Na potência visceral de um corpo em metamorfose, impossível não irmos a Platão, Kafka e até Manoel de Barros (“O sapo é um pedaço do chão que pula”). E esse chão é um homem.
No palco, o assombro de um corpo vigoroso, músculos marcados pela disciplina rigorosa do ator de treinos diários, na maioria das vezes, madrugada adentro. Nas andanças pelos palcos do país e do mundo, o desafio da renovação, dos diálogos que atravessam e enriquecem o Espécie. É sempre o outro a medida do teatro: o que provoca, o que desentoca, o que dialoga, mesmo sem palavras. Aqui vale uma referência a Guimarães Rosa: “O mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, mas que elas vão sempre mudando”. O Espécie está sempre no fio da navalha das mudanças para o ator, a diretora e a plateia. É uma experiência que não se repete, não importa quantas vezes a gente assista.
Espécie no velho mundo e em Goiânia
Com uma bem-sucedida turnê pela América do Sul, passando pelo Chile, Uruguai e Argentina (2024) e Europa (2022), Espécie volta ao continente europeu para temporada de um mês. No período de 7 de novembro a 4 de dezembro próximo, percorre várias cidades da Espanha, dentre elas Madri, Zaragoza e Manzón, e Portugal, em Lisboa e Aveiro. Em janeiro próximo, chegará à Alemanha.
A circulação internacional conta com apoio da Lei Aldir Blanc, operacionalizada pelo Governo de Goiás, por meio da Secretaria de Estado da Cultura (Secult). A produção para essa circulação internacional é da Dias e Melo. E para quem ficou curioso em relação a esse espetáculo, bom ficar de olho na agenda do Claque Cultural. A peça volta ao palco do Teatro Sesc/Centro no dia 17 de dezembro, às 20 horas.
Cida Almeida, jornalista, poeta e prosadora, é colaboradora do Jornal Opção.
