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Eurípedes Leôncio

Especial para o Jornal Opção

Segunda parte do ensaio

Bernardo Élis respondeu a este professor e articulista, seu ex-aluno, que com grande honra procurou substituí-lo no Instituto Rio Branco, numa longa e histórica entrevista, publicada no caderno “Educação e Cultura”, do jornal “Folha de Goyaz”, na edição de 26 de março de 1972, “O Caminho da Imortalidade”, de onde transcrevemos o que se segue:

— “Na verdade sou o primeiro escritor goiano a tentar ingressar na Casa de Machado de Assis, onde todos os Estados brasileiros têm ou já tiveram filhos, com exceção do Amazonas, Espírito Santo e Goiás;

— Para repetir uma metáfora: a Academia é uma mulher caprichosa e enigmática;

— Infelizmente, Goiás tem sido omitido dos meios cultos do país que o estabelecimento de um círculo de conhecimentos e de simpatia deve ser o primeiro passo;

— A criação da Universidade Federal e da Católica veio dar novo e poderoso impulso ao nosso desenvolvimento literário, permitindo que o autor goiano fosse mais lido, comentado e estudado. Por outro lado, as Universidades ensejaram o estudo da teoria literária e a análise da obra literária por alunos e professores que também são escritores de modo a contribuir para o levantamento do nível cultural;

— Uma das coisas irritantes e destruidoras em ambientes culturais como Goiás, é isso, não entenderem como trabalho o esforço da produção do artista;

— Na verdade, o que há entre nós é tolerância excessiva no julgamento em que o fator emocional tem primazia;

— Vivemos num momento de grandes mudanças e evoluções, em todos os setores, principalmente nas artes. As teorias se sucedem com tamanha rapidez que é impossível permanecer atualizado.

— No campo da literatura, então, o fenômeno é muito sensível. Uma obra tradicional que siga os moldes da ficção de antes da Primeira Grande Guerra já ninguém consegue ler, é intragável. No entanto, também é intragável uma literatura dessa chamada muito avançada, sem tempo nem espaço definidos, sem personagens nem enredo, vazada numa linguagem repleta de metáforas de cunho tecnológico. Estamos quase no ponto do português que emigrou para os Estados Unidos e lá esqueceu o português sem nunca ter chegado a aprender o inglês”.

Uma noite goiana na Academia

Para ilustrar este artigo sobre o genial escritor goiano, recorremos ao nosso arquivo e encontramos a página histórica: “Uma Noite Goiana na Academia”, escrita pelo enviado especial de “O Popular”, jornalista, escritor e acadêmico Hélio Rocha, de 12 de dezembro de 1975 registrando a posse de Bernardo Élis, na Academia Brasileira de Letras, na cadeira nº 1:

“A grande referência que faltava à cultura de Goiás no plano nacional ganhou finalmente, com a posse de Bernardo Élis na cadeira nº 1 da Academia Brasileira de Letras. A dívida cultural do Estado para com o país e vice-versa. À falta dessa referência, foi resgatada no austero e lotado salão da Academia, numa solenidade que exaltou os valores goianos, premiando e compensando a longa espera pelo ingresso do primeiro filho de Goiás na Casa fundada por Machado de Assis”.

O acadêmico Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, no seu discurso de saudação ao novo imortal, exprimiu à exaustão o significado do ingresso de Bernardo Élis na Academia para a cultura goiana (e, claro, brasileira). A minuciosa análise da obra bernardiana contida no discurso de Aurélio Buarque de Holanda foi bastante além da exaltação individual do escritor, para consubstanciar sobretudo, uma comovedora homenagem a Goiás. Esta é a impressão que ficou a mais de uma centena de goianos presentes à solenidade de posse.

Um hino de amor

Elegante e espigado dentro de seu fardão verde e ouro, Bernardo Élis dirigiu-se à tribuna do salão e debaixo de um dos lustres franceses que iluminam o austero ambiente começou o seu discurso:

“Neste momento, quando o primeiro goiano chega a esta academia, refletindo a alegria que vai na alma de meus coestaduanos, eu também não consigo disfarçar minha emoção. Não consigo abafar as recordações que me vem ao peito, especialmente as lembranças de Goiás, a Vila Boa dos Bandeirantes, onde estudei e formei meu espírito, onde fiz as grandes amizades de minha juventude.

“Goiás, foi na verdade semente e berço da cultura da dilatada Pátria que é o Oeste. Ali, durante dois séculos encasulado no coração do Brasil, permaneceu como sentinela avançada, vigilante no cerco perene e invisível das distâncias e do deserto. Num recolhimento morno de grão que germina na terra, realizava a defesa da cultura e da língua nacional.

“— Ah, minha velha Goiás pelas ruas estreitas e brancas de luar, em noites de serenata, poetas e músicos soluçaram queixas de amor e hinos de louvar à terra.

Bernardo Élis: um dos maiores prosadores brasileiros | Foto: Reprodução

“Nas tardes mornas de cigarras, Antônio Félix de Bulhões Jardim, primeiro poeta goiano, chorava sua solidão de romântico, enquanto lutava pela libertação dos escravos, qual outro Castro Alves.

“No velho ‘gabinete literário’, Hugo de Carvalho Ramos confundia a tragédia de seus contos com sua própria tragédia de suicida na flor dos anos.

“Na redação dos jornais, nas esquinas, no mercado público, nos saraus costumeiros, de par com a paixão política localista, debatiam-se as ideias que agitavam o mundo.

“Foi nesse ambiente que nasceu e tomou corpo uma ideia formidável — a criação de Goiânia, a nova cidade que deveria ser a capital do Estado. E da chapada agreste, onde apenas os buritis conversavam com os ventos e os pássaros de Deus, se ergue a metrópole de amplas avenidas abertas para o alto e para o mundo. Crescendo e crescendo ainda, a nova cidade destronou a velha Vila Boa, arrebatando-lhe o título de capital, que ostentou por dois séculos. A velha cidade, morreu? Morreram sua cultura e seu heroísmo?

“É aqui que pressinto aproximar-se de mim um vulto. Claro de tez, alto porte, esbelto de corpo apesar de velho, risonho e limpo. Tem um ar de sacerdote, por força do latim que cita sempre. Não sinto nele a substância dos homens, nem dos bichos, nem das coisas. Ele se tece da inefável substância do sonho e da fantasia. Risonho e severo, uma voz amiga, diz-me alguma coisa ao ouvido – ao meu ouvido esquerdo, que escuta o coração. Quando me volto para melhor ouvi-lo, sinto que se dilui no ar e desaparece como surgiu.

“Mas a partir daí, instala-se em mim um entendimento mais claro, que me permite lembrar o que murmurou. Disse que a ‘Morte é o anoitecer de um belo dia’. Disse que ‘sobre a morte repousa o progresso social’, como lhe revelara Augusto Comte. Disse que a ‘morte renova os espíritos, dando lugar ao novo’.

Gilberto Mendonça Teles, Bernardo Élis, Afonso Félix de Sousa e José J. Veiga: companheiros de geração | Foto: Reprodução

“Agora reconheço o vulto, sua voz, seu gesto, limpo. E meu entendimento se aclara e apura. Ah, minha velha Goiás de antanho! Foi preciso que morresse para renascer numa centena de outras cidades tão heroicas como tu! Teus filhos, em vez de bateia, ou do aguilhão das vaquejadas, ou o ronceiro carro de bois, teus filhos hoje manejam máquinas e engenhos que os tornaram tão poderosos quase como os deuses. Parte da juventude já encontra nas escolas e nas universidades explicação para suas atormentadas indagações juvenis. Se nem tudo ainda são flores, a vida que se renova lá vai construindo um mundo melhor, em meio dos sofrimentos e das alegrias de cada momento.”

O regionalista universal

Nos trechos do extraordinário discurso de Bernardo Élis quando de sua posse na Academia de Letras, registro histórico do jornalista Hélio Rocha, como expomos anteriormente, fez-se a grandeza, o exemplo e a lição de vida desse imortal goiano, não se afastando um milímetro de sua origem, de sua terra, de sua gente.

Seu discurso foi uma página sentimental memorável, sobre a universalização do ser humano que se torna maior, eterno em todas as paragens, na medida em que mais se identifica com sua nascente, sua fonte de inspiração, que no fundo é sua própria vida e sua origem presentificadas na sua cultura e fala. Por isso, seu regionalismo é universal, pois sua paisagem do Araguaia ao Rio Corumbá é poeticamente linda e metafórica, testemunhando a brutalidade, a ignorância do homem que teima em contrapor a suavidade das aves e o gesto romântico e resistente de uma flor.

Bernardo Élis é esse universo inesgotável de amor pela terra, de coragem, denúncia social, onde os simples e humildes foram e são massacrados pela selvageria dos corações brutalizados pela ganância e pelo poder.

Bernardo Élis, um exemplo de persistência, amor à arte e a vida, de registro a tudo que o envolveu, ameaçou, censurou e é a corporificação viva do destemido que encheu a Academia Brasileira de Letras com a nata de nossa intelectualidade para promover, não um discurso político, mas plantar no Casarão de Machado de Assis a formidável semente da crença no amanhã, mesmo arrancada das lembranças amargas do passado, mas que só os iluminados são predestinados a semear.

Eurípedes Leôncio é escritor, professor e crítico literário.

[Leia a primeira parte do ensaio: https://tinyurl.com/yeyuzpjj]