O precursor Miguel Ángel Asturias: o espírito latino-americano entre evoluções e ditadores
06 dezembro 2025 às 21h00

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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Há algo que impregnou profundamente a alma dos grandes escritores da América Latina: o fascínio e o horror diante das revoluções e dos ditadores. Poucos continentes produziram tantos regimes de exceção — e, ao mesmo tempo, tantas obras-primas capazes de compreender o poder, a violência e a esperança com tamanha profundidade.
Entre esses escritores, destacam-se dois gênios que se tornaram espelhos de um mesmo destino histórico: o colombiano Gabriel García Márquez e o peruano Mario Vargas Llosa. Ambos transformaram em literatura o que a história insistia em repetir — o ciclo de utopia e despotismo que marca a América Latina desde o século XIX.
Em “Cem Anos de Solidão”, García Márquez ergue a saga dos Buendía como metáfora da própria América Latina: um continente condenado a viver seus mitos como realidades e suas realidades como mitos. Em Macondo, a solidão do poder é tão absoluta quanto a dos que sofrem sob ele. O coronel Aureliano Buendía, preso à sua interminável guerra civil, é o retrato do revolucionário que, ao lutar contra a tirania, acaba criando sua própria forma de despotismo. Já em “Ninguém Escreve ao Coronel”, o mesmo autor reduz a epopeia ao silêncio: o velho militar aposentado espera uma carta que nunca chega — símbolo da promessa traída das repúblicas nascidas das revoluções.

Vargas Llosa, por outro lado, mergulha no coração político e moral do autoritarismo. Em “A Festa do Bode”, o escritor peruano revela o inferno da República Dominicana sob o ditador Rafael Trujillo, o “Bode”, símbolo da degradação absoluta do poder. A cena em que Urania revela, no fim do romance, o abuso que sofreu é uma das mais pungentes denúncias do machismo e da tirania na literatura.
Já em “Conversa na Catedral”, Vargas Llosa transforma o Peru dos anos 1950 em um labirinto de medo e corrupção. “Em que momento o Peru se ferrou?”, pergunta o personagem — uma interrogação que ecoa por todo o continente, estendendo-se a Cuba, ao Chile, à Argentina, ao Brasil e a tantos outros países marcados por promessas frustradas.
Esses autores não apenas narraram ditaduras — compreenderam o mecanismo espiritual que as sustenta: o desejo de salvação coletiva que se transforma em poder absoluto. A literatura latino-americana, ao falar de seus tiranos, fala também de seus sonhos. É uma literatura de cicatrizes e esperanças, de memórias feridas e revoluções inacabadas — um espelho onde a liberdade e o medo continuam se olhando, face a face.
Miguel Ángel Asturias: o precursor
A introdução desta resenha conduz inevitavelmente a um nome que, por direito e mérito, deve ser lembrado ao lado dos grandes: Miguel Ángel Asturias (1899-1974), poeta, romancista, dramaturgo e diplomata guatemalteco laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1967, treze anos antes de García Márquez receber a mesma distinção. Autor de uma obra vastíssima — entre elas “Homens de Milho”, “Mulher de Palha”, “Lendas da Guatemala” e “O Senhor Presidente” —, Asturias foi um dos primeiros a decifrar a alma política e mítica da América Latina.

De todas as suas criações, nenhuma é tão impactante quanto “O Senhor Presidente”, romance que revela, com linguagem poética e estrutura modernista, o universo de opressão, medo e silêncio que permeia as ditaduras do continente. Publicado em 1946, o livro antecipa temas e recursos narrativos que, décadas mais tarde, se tornariam característicos do chamado realismo mágico. Asturias mistura sonho e pesadelo, religião e política, o grotesco e o sagrado, construindo um retrato simbólico da tirania que ultrapassa o caso guatemalteco e alcança dimensões universais.
Resta, porém, a pergunta: por que razão esse autor, tão influente e consagrado, não participou ativamente do “boom latino-americano”, movimento que projetou para a Europa escritores como García Márquez, Vargas Llosa, José Donoso, Julio Cortázar e Carlos Fuentes? (Vale lembrar que, neste universo masculino, há uma poeta e prosadora, a uruguaia Cristina Peri Rossi, que mora em Barcelona e era amiga de Cortázar. Vale o registro de que, antes de todos, uma escritora chilena, María Luisa Bombal, inspirou Jual Rulfo e, por tabela, García Márquez.)
A resposta está, em parte, no tempo e no contexto histórico. Quando o “boom” começou, nos anos 1960, Asturias já era um escritor maduro, formado sob a influência do surrealismo francês e dos movimentos vanguardistas das décadas anteriores. Seu estilo, carregado de simbolismo e religiosidade indígena, contrastava com a estética mais urbana e experimental dos novos autores. Além disso, o “boom” foi impulsionado por fortes redes editoriais e jornalísticas sediadas em Barcelona, Paris e Buenos Aires — ambientes dos quais Asturias, diplomata e homem reservado, manteve certa distância.

Mas há outro motivo, talvez mais profundo: Asturias pertenceu à geração fundadora, àquela que abriu os caminhos que o “boom” percorreu. Seu “O Senhor Presidente” já continha, em 1946, as sementes do realismo mágico, da crítica política e da fusão entre o mito e a linguagem popular que depois encantariam o mundo. Ele foi o precursor, o artesão de uma linguagem latino-americana antes de ela se tornar moda literária.
Assim, a ausência de Miguel Ángel Asturias do “boom” não é sinal de esquecimento — é o reconhecimento silencioso de que ele chegou antes. Sua obra preparou o terreno para que outros colhessem os frutos. E é justamente por isso que “O Senhor Presidente”, lido hoje, conserva um poder intacto: nele estão as origens da literatura latino-americana moderna, com toda sua poesia, sua violência e sua verdade.
O romance e os personagens
“O Senhor Presidente” projeta uma verdadeira cartografia do poder. O autor mostra como a força do regime não está apenas no centro — no palácio, no presidente —, mas se irradia pelas pontas, infiltrando-se nas vielas, nas prisões, nas casas e até nas consciências.
Ainda que o ditador quase nunca apareça, seu espírito domina tudo: o medo, a traição, a virilidade deformada dos soldados e o silêncio cúmplice dos civis.
Asturias constrói uma metáfora continental da opressão latino-americana, mostrando como regimes autoritários — visíveis ou invisíveis — transformam o povo em massa obediente e fragmentada. A “doença” do poder é também a doença do homem comum, corrompido pelo hábito da servidão. A crítica é direta às ditaduras da América Central e, por extensão, ao próprio continente que, por décadas, viveu sob o peso do medo e da censura.

O ditador raramente aparece em cena, mas sua influência domina todas as esferas da vida: das praças públicas às prisões, das casas silenciosas às consciências aterrorizadas. É um poder que se infiltra por todos os poros da sociedade, um medo que respira junto com o povo. “O Senhor Presidente”, figura quase mítica, não precisa agir diretamente: sua presença é atmosférica, paira sobre gestos, palavras e silêncios. É a encarnação do medo, o símbolo de um Estado que devora seus súditos. Sua ausência física é a forma suprema de poder: governa pelo rumor, pela delação e pelo olhar vigilante dos que o temem.
É dentro dessa atmosfera que emergem as figuras centrais, verdadeiros espelhos da degradação e da resistência humana.
Miguel Cara de Anjo, assessor leal e braço direito do ditador, encarna o conflito entre obediência e consciência. Educado para servir, ele internaliza o medo e a disciplina, mas o amor por Camila Canales o desperta para a humanidade perdida. Sua trajetória representa a queda moral do servidor que tenta resistir ao sistema e que, ao buscar redimir uma vida, termina condenado pelo mesmo poder que sustentava.
Camila Canales, filha do general perseguido, é o rosto feminino da inocência que sobrevive no inferno. Sua relação com Cara de Anjo revela a possibilidade de pureza num mundo corrompido, mas também a fragilidade do amor diante do Estado. O poder tenta possui-la não apenas fisicamente, mas simbolicamente, como se o corpo da mulher fosse o último território a ser conquistado pelo medo.
O general Canales, homem de passado honrado, é acusado injustamente de um crime político e obrigado a fugir. Representa o inimigo fabricado, figura comum nos regimes totalitários. Sua perseguição mostra como o Estado cria fantasmas para manter viva a paranoia coletiva.
O major Farfán, oficial submisso, vive à mercê das ordens absurdas do regime. Seu destino trágico — ser salvo e ainda assim condenado — expõe o caráter irracional e cíclico da repressão: no mundo do Presidente, até a obediência pode ser punida.

A Mendiga é a voz do povo mutilado, a carne viva da miséria. Suas falas delirantes misturam súplica e profecia, como se anunciassem a decomposição moral de todo o país. Nela, Asturias dá corpo ao sofrimento coletivo e à alienação gerada pelo medo — o avesso da grandiosidade do poder.
O licenciado Abel Carvajal, advogado e manipulador, é o exemplo do intelectual a serviço da tirania. Usa a lei para justificar o arbítrio, mostrando que a opressão não se sustenta apenas com soldados, mas também com burocratas dispostos a legitimar a injustiça.
O Auditor representa a engrenagem burocrática do Estado, o funcionário ideal de um regime que prefere números a rostos, relatórios a consciências. Sua frieza mostra que a repressão não é apenas política, mas também administrativa e cotidiana.
Todos esses personagens se movem dentro de uma mesma teia: a do Estado opressor, que transforma cada cidadão em vigia e cada gesto em suspeita. O Senhor Presidente não precisa matar para reinar; basta existir como ideia de poder absoluto, impregnada nos sonhos, nas culpas e nos silêncios. Assim, Miguel Ángel Asturias transforma o romance numa alegoria da América Latina: um território onde o medo é mais real que o próprio governante, e onde até o amor precisa se esconder das paredes.
O Senhor Presidente, A Festa do Bode e Cem Anos de Solidão
Os três autores — Asturias, Vargas Llosa e García Márquez — compartilham o mesmo impulso fundador: transformar a literatura em um espelho da história latino-americana. Em suas obras, o continente é visto como uma terra marcada pela desigualdade, pelo autoritarismo e pela mistura entre o real e o mítico. Contudo, cada um o faz com uma lente própria: Asturias com o olhar simbólico e político do surrealismo indígena; Vargas Llosa com o realismo cru do desencanto político; e García Márquez com o feitiço narrativo do realismo mágico, que converte a tragédia em epopeia.

Em “O Senhor Presidente”, Asturias retrata a América Latina sob a forma de uma ditadura atmosférica, na qual o poder é invisível e total. O ditador, quase ausente, domina a alma de um povo aprisionado pelo medo. O ambiente é de pesadelo coletivo: o Estado aparece como uma entidade viva que transforma homens e mulheres em sombras de si mesmos. A linguagem, fragmentada e poética, é o espelho dessa opressão. Asturias não descreve apenas uma tirania política, mas uma tirania espiritual, na qual a mentira e a traição se tornam modos de sobrevivência. Sua visão é a de uma América Latina devorada por seus próprios fantasmas, onde a opressão não vem apenas de cima, mas circula entre os próprios cidadãos.
Em “Conversa no Catedral”, Vargas Llosa desloca o olhar para o Peru da ditadura de Manuel Odría, nos anos 1950, e pergunta: “Em que momento o Peru se ferrou?”. Essa pergunta, feita por Santiago Zavalita no bar “A Catedral”, ecoa em toda a narrativa e se transforma numa reflexão sobre a ruína moral da sociedade peruana — e, por extensão, da América Latina. Se em Asturias o poder é uma presença mística e onírica, em Vargas Llosa ele é burocrático, cínico e histórico. A opressão é racionalizada, distribuída em níveis: o policial corrupto, o funcionário submisso, o jornalista frustrado, o empresário conivente. Todos participam da engrenagem. O autor recusa o lirismo e adota uma estrutura labiríntica, feita de vozes entrelaçadas e lembranças interrompidas, para mostrar que o poder se infiltra na linguagem e na memória. Sua América Latina é um lugar onde o sonho liberal fracassou e onde a liberdade é sufocada pela mediocridade e pela conveniência.
Já em “Cem Anos de Solidão”,García Márquez concebe a América Latina como um espaço de eternos recomeços, simbolizado pelo vilarejo de Macondo. Se Asturias vê a repressão e Vargas Llosa vê o colapso político, García Márquez enxerga o ciclo da história, no qual o poder, o amor e a solidão se repetem como destino. Macondo é uma metáfora continental: nasce do idealismo dos fundadores e termina submerso pelo esquecimento. O autor mistura o cotidiano e o maravilhoso, transformando a realidade latino-americana em mito universal. No fundo, o que ele denuncia é o mesmo que os outros: o isolamento histórico do continente, a incapacidade de romper o círculo de dominação e esquecimento. Mas o faz com uma ternura trágica, onde o absurdo e o poético se fundem.
Apesar das diferenças de estilo e ênfase, há entre os três autores uma comunhão profunda: todos descrevem sociedades condenadas pela memória e pela falta de autocrítica, onde o poder se perpetua não apenas pela força, mas pela cultura da submissão. Asturias escreve sob o signo da denúncia visionária; Vargas Llosa, sob o signo da desilusão política; e García Márquez, sob o signo da melancolia histórica. Asturias é o grito; Vargas Llosa, a interrogação; García Márquez, o epitáfio.

A América Latina do medo, da corrupção e da solidão, mas também o da resistência, da palavra e da memória. Em todos eles, o homem latino-americano vive o dilema entre a esperança e a ruína — condenado a reviver a história até que aprenda a libertar-se do próprio labirinto.
Uma sociedade paranoica e a leveza do amor
O romance “O Senhor Presidente” apresenta um dos retratos mais sombrios e penetrantes das ditaduras latino-americanas. Ambientado em um país sem nome — mas evidentemente inspirado na Guatemala sob regimes autoritários —, o livro mergulha o leitor em uma atmosfera de medo, delação e degradação moral, onde a figura do presidente paira como um espectro invisível, moldando e corrompendo todas as relações humanas. No entanto, é justamente nesse cenário asfixiante que Asturias faz brotar um paradoxo profundamente humano: a leveza do amor, que insiste em florescer mesmo entre ruínas éticas e espirituais.
Sob o peso do autoritarismo, os personagens vivem como sombras. A vigilância constante, a tortura e o medo fazem com que a sociedade funcione como uma máquina de paranoia — uma sociedade dominada pela desconfiança, pelo pavor e pela sensação de que todos estão sendo observados. As emoções autênticas são deformadas, e a empatia, vista como fraqueza, é substituída pela obediência cega. Ainda assim, Asturias demonstra que o amor é uma força subterrânea que escapa ao controle político.
É nesse contexto sufocante que floresce o sentimento entre Miguel Cara de Anjo, homem de confiança do Presidente, e Camila Canales, filha do general Canales, injustamente acusado de traição. O amor entre os dois nasce do improvável: ele, um homem comprometido com o poder e suas engrenagens; ela, filha de um militar caçado pelo regime. Essa relação se transforma em um oásis de pureza em meio à brutalidade. A ternura entre Cara de Anjo e Camila revela que, mesmo sob o domínio do medo, o ser humano é capaz de resgatar um fragmento de dignidade. Esse amor clandestino, frágil e ameaçado, é também um ato de resistência — uma forma de afirmar a vida onde reina a morte moral.
Ao lado dessa delicadeza, porém, está a presença constante dos cabarés, espaços que simbolizam a degradação moral da sociedade controlada pelo Presidente. Neles, o prazer é uma mercadoria, e os corpos são instrumentos de poder e submissão. Asturias os descreve com uma linguagem sensorial e quase alucinatória, transformando o cabaré num microcosmo do país: um lugar onde se misturam desejo e desespero, onde a máscara do prazer encobre a miséria espiritual. O cabaré é o avesso do amor — o erotismo corrompido pela lógica do poder, o simulacro da liberdade em um mundo de servidão.
Enquanto o amor entre Cara de Anjo e Camila representa a possibilidade de transcendência, o ambiente dos cabarés mostra o esvaziamento das relações humanas. As mulheres que ali vivem são vítimas e cúmplices de um sistema que as usa e descarta; os homens, clientes e agentes do mesmo poder que os oprime fora dali. Assim, o espaço do cabaré, com sua música, sua fumaça e sua sordidez, revela o rosto mais íntimo do regime: o prazer transformado em anestesia e a moral dissolvida na mentira.
Em “O Senhor Presidente”, Asturias constrói, portanto, uma metáfora completa do autoritarismo: um mundo em que o poder invade os corpos, as palavras e até os sonhos. Mas o autor também afirma — com a sutileza dos grandes humanistas — que, mesmo no pântano da tirania, pode nascer uma flor. O amor de Cara de Anjo e Camila, ainda que breve e ameaçado, surge como um ato de subversão, um gesto de fé na humanidade. Nesse contraste entre o erotismo degradado dos cabarés e o amor puro que sobrevive em meio à barbárie, está a força
Contribuição do livro ao meu universo literário
Ler “O Senhor Presidente”, de Asturias, representou uma ampliação significativa do meu universo literário. Em primeiro lugar, pela descoberta de um autor de expressão universal, pertencente a uma geração anterior às grandes estrelas do boom latino-americano. Antes de José María Arguedas, Lezama Lima, Juan Rulfo, Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, José Donoso e Carlos Fuentes revelarem ao mundo a força da imaginação latino-americana, Asturias já havia lançado as bases desse mesmo imaginário, ao criar um romance capaz de traduzir, em metáforas densas e poéticas, as contradições de nosso continente.
O contato com sua obra me permitiu compreender um outro modo de narrar a América Latina — uma narrativa que não depende apenas do realismo mágico, mas que se enraíza na paranoia política, no delírio do poder e na poesia da resistência. Asturias soube construir um universo próprio, sombrio e simbólico, onde o grotesco e o lírico coexistem, retratando a mesma realidade espiritual e social que os Nobel García Márquez e Vargas Llosa posteriormente explorariam.
Assim, ao ler “O Senhor Presidente”, percebi que Miguel Ángel Asturias é o elo que une o imaginário mágico da América Latina à herança existencial e alegórica de autores como Kafka. Seu romance combina o absurdo e o humano, o terror e a ternura, o poder e a loucura, oferecendo um retrato da América Latina tão intenso quanto universal. Certamente, García Márquez e Vargas Llosa beberam na fonte de outro Nobel, o guatemalteco Asturias, que muito antes deles já havia revelado ao mundo o drama e a grandeza de nosso continente.
Salatiel Soares Correia, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.
