O mundo sórdido de Festa do Covil, romance do mexicano Juan Pablo Villalobos

28 maio 2023 às 00h00

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Simone Athayde
Especial para o Jornal Opção
“Festa no Covil” é o primeiro romance do escritor mexicano Juan Pablo Villalobos, de 50 anos, publicado em 2010.
A obra, cuja edição britânica foi selecionada pelo jornal “The Guardian” entre os cinco finalistas do Fisrt Book Award, trata-se de um livro cujo narrador e protagonista é Tochtli, filho de Yolcault, um barão do narcotráfico mexicano.
Tochtli vai narrar seu dia a dia no “palácio”, uma fortaleza “no meio do nada” onde moram ele, o pai, dois outros homens do bando e alguns empregados. Como eles precisam viver isolados, o menino tem um cotidiano completamente diferente de uma criança normal: não tem amigos, não frequenta a escola e é testemunha das negociações criminosas.
Ainda que ele narre uma sequência de violências, nós, leitores, captamos mais do que expõe, pois não compreende o ambiente hostil no qual se insere, assim como uma criança que come frango ainda não descobriu que aquela carne veio de um bicho simpático que foi morto. Isto nos causa certa consternação pela forma com que ele narra com naturalidade alguns fatos brutais, como o de terem um tigre no jardim do palácio que come cadáveres (pessoas assassinadas pelo bando) ou quando o pai deixa que assista uma sessão de espancamento.

“Outro dia apareceu no nosso palácio um homem que eu não conhecia, e o Yolcault quis saber se eu era macho ou não era macho. O homem estava com o rosto sujo de sangue e na verdade olhar para ele dava um pouquinho de medo. Mas eu não falei nada, porque ser macho quer dizer que você não tem medo e se você tem medo é dos maricas. Fiquei bem sério enquanto o Miztli e o Chichikuali, que são os vigias do nosso palácio, davam uns golpes fulminantes nele. O homem acabou sendo dos maricas, porque começou a chorar e a gritar: não me matem! Ele até urinou nas calças. O bom dessa história é que eu provei que sou macho, sim, e o Yolcault me deixou sair antes que o maricas virasse cadáver, relata o menino.
Também ficamos sabendo, aos poucos, dos pormenores de sua vida: a ausência não explicada da mãe, uma dor de barriga que tem um fundo emocional, a presença de uma infeliz prostituta na casa, o poder do pai que pode comprar tudo, inclusive um casal de hipopótamos anões da Libéria, o sonho de consumo do menino.
Porém, esse homem bruto e insensível é incapaz de demonstrar afeto pelo filho ou de ampará-lo, pois acredita que deva fortalecê-lo para que se torne herdeiro dos seus negócios. Por isso, Tochtli não desenvolve sentimentos de empatia, pois acha que solidariedade tem a ver com receber presentes caros, ou seja, com coisas e não pessoas: “como eu gosto de chapéus, o Yolcault compra chapéus para mim, muitos chapéus.” “E além do dinheiro temos as joias e os tesouros. E muitos cofres com senhas secretas. É por isso que conheço poucas pessoas. Porque se eu conhecesse mais iam nos roubar ou passar a perna na gente como fizeram com o Mazatzin.”

O menino tem como hobbies assistir filmes de samurai, colecionar chapéus (caros e de todas as partes do mundo) e ler o dicionário, do qual tira cinco palavras difíceis que repete constantemente: sórdido, nefasto, pulcro, patético e fulminante. Como é criado só, tem um professor particular, Mazatzin, um personagem contraditório que parece ter um pouco de humanidade e consciência social, mas trabalha para um traficante e presencia as suas atrocidades.
Por ter um narrador criança em um ambiente de violência subentendida, o livro nos remete à obra “O Menino do Pijama Listrado”, que usa o mesmo argumento (um menino alemão cujo pai comanda um campo de concentração na época da Segunda Guerra Mundial) e uma linguagem também simples, que visa representar a voz infantil.
Mesmo com essa linguagem e a visão do narrador criança, o livro apresenta uma crítica profunda a outras violências mais gerais, como a dos colonizadores europeus, a dos Estados Unidos com suas costumeiras invasões a outros países, e a corrupção dos políticos, muitos deles envolvidos no tráfico e cúmplices do “El Rey”. Assim, temos um retrato amargo não só do México, mas também dos países de Primeiro Mundo, que levaram a violência, a fome e a corrupção às Américas e à África, e tal crítica aparece principalmente por meio do professor Mazatzin.
Também é através da fala de Tchotli que vamos percebendo nele as internalizações das falas do pai, impregnadas de machismo, de violência simbólica, de estereótipos e malícias que vão sendo aceitas pelo filho que deseja ter a aprovação paterna e, por isso, se esconde numa falsa dureza que será testada.
Há três momentos que considero cruciais no livro, porque servem como parâmetros para a formação do personagem. A primeira é a cena em que ele testemunha o espancamento e age como é esperado dele por parte do pai, na segunda (que não descreverei aqui para não tirar a surpresa dos leitores) ele deixará transparecer toda a dor e desespero que sente, e a terceira, ao final do livro, em que ficamos imaginando se esse menino se tornará como o pai, pois não há espaços para alguma redenção.
A mágica da narrativa de Juan Pablo
No texto da contracapa do livro lemos que Tochtli é “involuntariamente assustador e hilário em sua cândida crueldade”. Porém, não consegui achar engraçado, o que ficou para mim foi especialmente uma tristeza por ver que detrás de uma história ficcional há vários meninos que são criados como o Tochtli, que convivem com familiares psicopatas e se tornam adultos traumatizados ou, pior, que replicam as violências que sofreram.
O premiado escritor japonês Harumi Murakami, ao falar sobre o processo criativo de um livro, disse que “A qualidade dos materiais não é muito importante. O indispensável é a mágica. Ela pode criar um ‘aparelho’ incrivelmente sofisticado, mesmo se tivermos apenas materiais cotidianos e usarmos palavras simples”.
Talvez essa afirmação de Murakami possa servir para o livro de Juan Pablo, pois ao contrário do que se pensa, que um romance tenha que ter uma linguagem sofisticada e ter um bom número de páginas, “Festa no Covil” tem conquistado muitos fãs exigentes, mesmo sendo um livro fino, que se lê rápido e que não acalentará um leitor que queira uma história edificante, mas que fará pensar sobre infâncias roubadas e inocências violentadas, algo que, infelizmente, é muito comum na vida real.
Simone Athayde é escritora e crítica literária. Colaboradora do Jornal Opção.