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“Verdadeiro poema de exaltação da vida e da paciência exigida pelo viver, este romance tem muito a oferecer em emoções e lições de vida ao jovem leitor.” — Nelly Novaes Coelho

Soninha Santos

Especial para o Jornal Opção

Me peguei esses dias relembrando livros, histórias e personagens que ficaram gravados na memória. “Buracos”, de Louis Sachar, “Manual da Delicadeza e Fruta no Ponto”, de Roseana Murray, “Cem Anos de Solidão”, de García Márquez, “A Invasão das Borboletas”, de Ângela Lago… essas,  entre tantas outras obras maravilhosas e de artistas incríveis. Entretanto, me detive em um personagem em particular — Zezé — do romance “O Meu Pé de Laranja Lima”. A razão?

Nem todas as respostas imaginadas dariam conta dessa pergunta. Zezé foi, sem sombra de dúvida, um marco da minha infância e adolescência. E não por menos, pois conhecer sua história possibilitou meu desejo quase febril por um futuro melhor, por uma vida mais digna, por sonhos realizáveis.

Outro fator importante nessa minha lembrança e no propósito de trazer à tona o livro e o personagem foi a ideia de que crescer realmente dói e deixa muitas cicatrizes, por vezes, invisíveis aos olhos mais atentos, mas duradouras.

José Mauro de Vasconcelos com crianças indígenas | Foto: Reprodução

Um romance de formação

“O Meu Pé de Laranja Lima”, um romance de formação — pela transformação caótica e difícil, mas não menos humana do personagem — não caiu nas graças da crítica literária, e sim de milhares de leitores no Brasil e no mundo. Ouço vozes que falam em “pedofilia” do Portuga, no horror que sentem pela quantidade extrema de palavrões proferidos pelo personagem. Também ouço falar da singeleza da linguagem e da pobreza do enredo. Todas essas falas são proferidas principalmente no boca a boca.

Zezé se transforma em personagem menor e sua história um lugar tão comum dentro da literatura brasileira que “merece” ser esquecido, de acordo com as “más línguas”. Isso é triste.

Zezé era criança, era pobre e era severamente maltratado pelos adultos que o rodeavam. Carecia de ternura, de apreço e de afeto. Se xingava, o fazia reproduzindo um contexto adulto de exploração e maldade vivenciado por ele.

Em meio a tanto sofrimento e perda, ele busca conforto e consolo. Consegue isso por meio de um velho amigo, o português Manuel Valadares.

Zezé, o herói da história, tem 6 anos, às vezes 5, de acordo com a necessidade. É uma criança pobre e sofrida, mas dona de uma capacidade inventiva sem precedentes, talvez quem sabe, até da literatura universal (lembra, claro, o esperto Huckleberry Finn).

O menino foge das agruras e dos sofrimentos diários exercitando a pura e latente fantasia. Se refugia nas graças dos galhos de um pé de laranja lima — praticamente um personagem — e também na atenção que recebe de um velho português. A cena do caco de vidro é memorável.

Só assim o pequeno Zezé consegue sobreviver em meio a uma existência frágil, onde tudo falta, inclusive o afeto. Ele descobre, em meio a doloridas perdas e dores, que o puro e simples ato de viver dói e, se assim não fosse, nós leitores dentro de nosso casulo existencial, nada teríamos de humanidade em nós mesmos, muito menos o pequeno personagem da trama.

Até aqui poderíamos dizer que a obra se trata de uma narrativa comum, mas a leitura, nada ingênua, proporciona um nível maior de constatação do que o ato de viver significa. Zezé nos mostra que essa transformação nada mais é do que um avassalador rito de passagem onde a miséria vivenciada na infância, se socorrida em tempo tanto pelo afeto quanto pelo carinho, vai além. Resgata-se nessa trajetória, quem sabe, a humanidade perdida.

“O Meu Pé de Laranja Lima” é um livro que deve ser acolhido e cuidado, porque, se assim for, o leitor consegue sair de sua página final com um novo senso de humanidade e justiça. Viver dói mesmo, mas vamos deixar por isso mesmo?

Soninha Santos é professora e crítica de literatura infanto-juvenil. É colaboradora do Jornal Opção.