O livro dourado

09 agosto 2025 às 21h00

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Solemar Oliveira
Sem que vissem o milagre, uns observadores questionavam o comportamento ensimesmado: o cenho franzido, a boca apertada, um lábio fortemente imprimido contra o outro e os olhos oscilantes nos dois sentidos horizontais opostos, frenéticos. Eu o acusei de antissocial, mas ele retrucou com sua voz suada e trepidante que aquilo era um jeito mais do que comum de lidar com uma grande quantidade de pessoas. Segundo me confessou, era tímido. Ainda existem tímidos? Curiosamente, ele me assegurou que portava essa deficiência desde a infância. Instruí que se aproximasse da mesa de comidas e bebidas e experimentasse o licor de jenipapo, o pior na minha opinião, mas o único que oferecia álcool numa quantidade razoável e segura para induzir um paliativo para aquele mal incomum. Depois de beber, aguardou solenemente seu momento de fala. Para proferir sua curta palestra sobre o mal da literatura transversal no Oriente, precisava apenas de público. Sei que me deixei levar pela pena que senti de seu rosto contorcido e molhado, mas ele tinha mais experiência com essa situação do que eu imaginava. Tomou uma dose do licor apenas para não me desagradar. Cortesia era uma de suas qualidades, que eu pude perceber rapidamente, sobretudo durante a exposição, que não foi nada menos que genial. Na noite que se seguiu, foi recebido pelos organizadores do evento em um jantar bastante intimista, onde soltou lentamente o riso e a voz e contou diversas histórias sobre a literatura de famosos como Camus, Kafka, Dostoiévski e Tchekhov. Percebi que tinha a mania discreta, mas que deixava, por acaso, perceber, de colocar, periodicamente, a mão no paletó e acariciar um objeto em seu interior. Fez isso meia dúzia de vezes ainda no intervalo que precedeu o serviço às mesas.
Antes da meia-noite, me pediu que o levasse ao hotel. Estava cansado, e no dia seguinte teria um voo muito cedo e precisava descansar para uma nova rotina extenuante. Assim eram seus dias. Palestras e oficinas pelo mundo, acadêmicas ou não. Do lado de fora do auditório, andamos alguns metros até que estivéssemos na rua. A avenida larga crescia no sentido dos prédios maiores, e andávamos em silêncio enquanto observávamos os cartazes das peças de teatro. Num deles, o título exagerado “A barata” anunciava uma comédia inspirada em “A metamorfose”. O ator, uma estrela de nossa cidade já em vias de aposentar, ainda guardava os sinais que verificam a juventude, mas com um misto estranho e indecifrável de algo que passou da data de validade. Curioso, esse virou o motivo da conversa que iniciamos na caminhada adiantada. Falamos de como Kafka era introspectivo e não inclinado a superlativos. Não enalteceu muitas coisas e não declarou ser apaixonado por nenhuma obra em especial. Raramente elogiava e se declarava um admirador de um ou de outro escritor em particular.
Ao falar de Kafka, esfregava a mão no bolso do paletó como havia feito antes. Sem motivo, tornou-se obscuro e falou menos. “Quer saber que segredo eu guardo no meu paletó?” Olhei ao redor. O cartaz gigantesco com o anúncio da peça baseada na novela de Kafka ficara distante, mas dava pra ver o enorme K proeminente, avançando tridimensionalmente para fora do muro. Aquilo me motivou a dizer sim. Eu estava curioso para saber o motivo do cacoete. Retirou a mão fechada do bolso apertado e me mostrou uma caixinha pequena e, dentro dela, um paralelepípedo minúsculo. Ao retirar o objeto do interior da pequena caixa, pude, com certa dificuldade, verificar que era tão pequeno que cabia folgado na ponta do dedo mínimo. Era um livro. Um micro livro. Ele me disse que o livro pertencera a Kafka, cujo conteúdo trazia o texto maravilhoso de Johann Peter Hebel, “Caixinha de tesouros”. Disse que o livro fora dado de presente ao seu tataravô pelo próprio Kafka depois de ouvi-lo recitar, de cor, o “Reencontro Inesperado”. Kafka tinha verdadeiro apreço por Hebel e adorou a recitação.
O livro fora feito por um amigo de Kafka, atendendo a um pedido seu. As palavras foram escritas em uma escala nanométrica e só podem ser lidas com algum microscópio sofisticado. Ali estão os textos mais apreciados pelo escritor. Esse livro é a memória do dia em que meu tataravô recebeu do próprio Kafka um objeto espetacular. De fato, eu o guardo para que ele se transforme no documento referente a todos que vieram depois de Kafka e que, com suas impressões digitais, marcam uma sobreposição de impressões, em cima daquelas impressas pelo próprio escritor tcheco, e se transforme na memória da memória. O que fazia Kafka em seus dias de vida? Eu sempre me pergunto. Algum dia andou com esse micro livro em seu bolso e mostrou para alguém que o tocou e, para além das palavras escritas em seu interior, estão as marcas humanas do toque curioso e indeciso daqueles que o conheceram. Os nomes dos portadores estão gravados em nano letras no livro de Kafka. Esse livro nunca é abandonado e nunca confiado à guarda de alguém. Exceto se ele for oferecido como um presente. Um presente de Kafka. Esse livro é um Odradek: “Será que irá morrer algum dia?” Lembra-se do narrador de “Preocupações de um homem de família”? “A ideia de que talvez sobreviva a mim é quase dolorosa.” O livro deve permanecer. É um vórtice helicoidal de memória contínua e, para além de todas as gravações feitas pela mão humana, adquire consciência de todas as possíveis mãos que orbitaram ao redor de seu dono. O sentimento de Max, a delicadeza de Felice, a rigidez de Hermann. O livro é um sorvedouro de experiências. Carrega uma bagagem formidável.
Deixei o palestrante no hotel e voltei pelo mesmo caminho. Não retornei ao auditório. Fui para a ponte e simulei Josef K. de propósito. Acontece que o livro não me saía da cabeça. O nano livro que tem os nomes de todos aqueles que o possuíram desde Kafka e o sentimento do mundo, do seu mundo. Aquele homem quieto, soturno, com sua fala coesa e extraordinária, tinha a missão de presentear alguém, com a erudição necessária, para ser o portador do minúsculo livro. O livro que tinha a capacidade de colocar o seu portador em contato com o escritor de “O castelo”, “O processo”, “A metamorfose”, todas obras-primas indiscutíveis. O livro que é a retrospectiva de sensações que conectam qualquer um com a textura esquecida das mãos que forjaram a literatura mais importante do século XX. Eu precisava do livro. Voltei ao hotel para uma conferência com o palestrante, mas não sem antes buscar em minha casa uma edição muito rara de “Um médico rural”. Despido de preconceitos e livre de qualquer interesse comercial a respeito do livro, fui ao hotel com a intenção de pedir para conversar mais alguns minutos sobre o pequeníssimo livro. Lá me avisaram que o palestrante já havia deixado o quarto definitivamente. Busquei ao redor e não o encontrei em nenhum bar ou nas ruas vizinhas. A impressão é que havia desaparecido completamente, como num passe de mágica.
Fui ao aeroporto na esperança de encontrá-lo esperando o voo com uma antecedência enorme. Pelas suas características de reservado, essa poderia ser uma opção. Depois de vasculhar as proximidades do portão de embarque, encontrei o velho senhor sentado sozinho, muito desconfiado, com a cabeça baixa, olhando os sapatos, levemente sonolento e com a mão no bolso, esfregando a caixa como de costume. Disse boa noite e afirmei que era tarde para estar acordado e ainda muito cedo para o embarque. Ele retirou a caixa do bolso e, sem dizer uma só palavra, me estendeu a mão. Não tive reação. Ele apenas afirmou: “Receba, é sua!” O tempo todo eu estava com o meu livro raro nas mãos, mas só quando recebi o livro de Kafka percebi o quanto meu plano era patético. Que importância teria um simples objeto para aquele que possuíra o livro dourado que pertencera a Kafka? Ainda assim, do fundo de sua gentileza, ele me disse, amável: “Dê-me o ‘Um médico rural’, mas entenda, não é uma troca!” Depois se levantou e caminhou um pouco mais adiante com a intenção de ficar sozinho. Voltou-se para mim e disse: “Você tem que gravar o meu nome no livro. Não é simples e não se encontra esse tipo de artista facilmente. Precisa buscar. Seu nome virá, oportunamente. Essa é a memória de Kafka. Não deixe que morra.”
Um turbilhão de coisas me passou pela mente enquanto eu acariciava a caixinha, que imediatamente coloquei no bolso. Para ler seu conteúdo, eu iria a qualquer lugar em busca de recurso. Para gravar o nome daquele senhor, eu precisaria de disposição e disciplina. Tudo isso eu tinha. Toda vontade eu possuía. De Hebel a Kafka, eu admirava tudo que fosse literatura, nomes e letras. Eu estava encantado com o fato de que a pequena caixa com seu mínimo livro provocaria em mim uma metamorfose.
Solemar Oliveira, físico e professor da UEG, é escritor. É colaborador do Jornal Opção.