Fernando Cupertino

Já faz bem anos que não vou ao leilão de Santa Luzia, no imponente edifício onde se encontra a sede da Irmandade de Santa Luzia – Classe Operária, na esquina da Rua d’Abadia com a Rosa Gomes, na minha velha e querida Cidade de Goiás. Ali funcionara, em tempos mais antigos, a Escola de Aprendizes Artífices, uma criação do governo do presidente Nilo Peçanha, que daria origem, depois, às escolas técnicas federais espalhadas por todo o Brasil.

Dentre minhas lembranças da infância, esse leilão sempre foi uma das mais preciosas. Coroava um dia inteiro de festividades, orações, missa, procissão e também a sagrada tradição de, lá pelo meio da tarde, ir levar uma prenda que a cada ano minha avó Altair oferecia para ser leiloada logo mais à noite. Ela não aceitava a ideia de comprar alguma coisa e mandar; ao contrário, tinha que ser algo feito por ela mesma. Afinal, Santa Luzia era a protetora « da vista », zelando pela saúde dos nossos olhos e, assim, era preciso um esforço pessoal para demonstrar-lhe gratidão e devoção.

Houve anos em que a oferta fora um forro de crochê; em outros, uma colcha de retalhos ou mesmo uma generosa quantidade de doce de leite em barrinhas, no formato de um delicado losango, acondicionadas numa “caixinha de segredo”, que ela mesma fabricava em cartolina, dando-lhe a forma de pássaro, ou de navio… coisa aprendida nos tempos idos das irmãs dominicanas francesas de Monteils, do Colégio Sant’Ana.

Mas voltando ao leilão, era com meu avô que eu ia, todo animado com a expectativa dos alegres e engraçados pregões que ecoavam a noite toda pelas vozes possantes dos leiloeiros. Havia leitoas e frangos assados, empadas, doces, lombo de porco com farofa, e muito mais:

– Vinte cruzeiros por este frango assado com farofa!!! Vinte cruzeiros por este belo frango assado com farofa!!! Quem dá mais?

– Vinte e cinco cruzeiros!!! Vinte e cinco cruzeiros, que é para Seu Higino não comer o frango!!! Vinte e cinco cruzeiros!!! Como é, Seu Higino, vai aumentar o lance ou vai ficar só na vontade de comer o frango???

E assim seguiam-se outros pregões, em alta voz.

Por sobre todo o burburinho, a banda de música do batalhão da Polícia Militar animava a festa com valsas, tangos, choros e marchas, pelo que os músicos recebiam o agradecimento dos presentes através de garrafas de cerveja ou bandejas de salgados que, após arrematados, a eles eram entregues para que não lhes faltassem força e empenho no nobre mister de alegrar os espíritos noite adentro. Aliás, dizia-se que quanto mais bebiam, melhor tocavam…

De vez em quando, ouviam-se ser apregoados jacás de figos verdes para fazer doces; pitombas, ingás e outras frutas. Havia até mesmo frangos e galinhas vivas, a serem arrematadas por quem se interessasse por tais criações. Meu avô ficava atento para arrematar uma quarta ou, pelo menos, meia quarta de figos, que minha avó transformaria em um dos doces de sua predileção. A gente de hoje talvez nem tenha conhecimento sobre essa medida antiga. Lembro-me bem de que uma quarta de farinha, por exemplo, equivalia a 20 litros…

Ali eu comecei a compreender a sublime lição de que todos somos absolutamente iguais em dignidade. Cada qual oferecia o que podia e ninguém se sentia mais ou menos do que os outros. Todos se respeitavam e tratavam-se com gentileza, convivendo com alegria. Era um mundo diferente, onde o individualismo ainda não tinha fincado tão firmemente suas raízes. Um mundo onde as pessoas sentiam genuíno prazer na convivência e extraíam das coisas simples os significados mais profundos…

Fernando Cupertino, médico, compositor e escritor, é colaborador do Jornal Opção