O grito em versos do escritor José Donizete Fraga
27 junho 2015 às 10h32

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Em um cenário dantesco, obra de autor goiano retrata a humanidade na desatinada locomotiva da sociedade brasileira

Vem do mais fundo esse meu canto.
Vem das locas do sofrimento
chega sempre antes que a manhã termine.
E quando a noite que nos chega é pródiga
em nos cobrir com seu manto de lamentos.
Vem lá de dentro esse meu grito.
Antes um berro que se impõe
um verbo que se faz uma faca na porfia.
Lâminas com seus cachos de palavras
a disparar contra o escuro mais sombrio.
José Donizete Fraga
Valdivino Braz
Especial para o Jornal Opção
Os poemas da obra “Cantos Subterrâneos”, de José Donizete Fraga, recentemente lançada, configuram a visão mesma de um cenário dantesco e, logo que se começa a lê-los, embarca-se no trem que se põe em movimento na linha férrea dos versos combustíveis. Simbólico trem-de-ferro. Metafórica e planetária locomotiva do globo giratório em que vivemos. “Audíveis”, no livro sobredito, os ecos poéticos à sombra ou influência de Augusto dos Anjos; aspectos, aliás, que se confirmam ao ler o posfácio do escritor Itamar Pires, que os aponta juntos a outras influências. O tema do subsolo, por exemplo, remete-nos a Dostoiévski, que Fraga anda a ler.
Boas influências, diga-se de passagem, não desabonam a obra, senão quando por demais flagrantes, fortemente ressoantes, depondo contra o autor. Não é o presente caso, não chega a subestimar a vertente poética de Fraga. Então, nem há porque, em caso de menor monta, padecer por conta da “angústia da influência” pontuada por Harold Bloom. Claro, a questão do estilo próprio ou, no mínimo, diferenciado. Pode-se furtar de fortes ou mesmo de médias influências, senão que, de foro íntimo, admiti-las e “aceitar-lhes”, afetivamente, a presença, como se a dialogar com elas.
A fundo, quem tem muito medo à retórica de Harold Bloom, ou de um joyceano estilo e paralelo à homérica Odisseia, com o corno Leopold Bloom às avessas de Ulisses? (Ó infiel Molly Bloom! Ah, fidedigna Penélope, alguma controvérsia ou conversa fiada se ouve dessa tua fidelidade. E até tu, Capitu?). Harold e Leopold à parte, por certo que estilo próprio não desafina com alguma benéfica influência, similitudes ou ressonâncias. Pelo sim e pelo não, a crítica abalizada e presumida rebobine isso para nós.

Mas, sim, voltemos ao início. Os poemas de Fraga, ácidos e lúcidos, processam uma visão crítica de comportamento e da humanidade que somos, tangenciando o sociopolítico ao poematizar/problematizar certo combate ao “Sistema”. Os poemas evoluem em um contexto que nos afeta e nos move com o trem e com a Terra. Há um tom clássico em seu vocabulário de expressão e uma atmosfera de desesperança, angústia e desespero humano em meio a tudo que nos cerca e envolve num giro vertiginoso, regido por um viver mecânico e desumanizante.
O processo “evolutivo” e “civilizatório” do homem, do qual não se isenta a desatinada locomotiva da sociedade brasileira, meio que tirante ao inferno de Dante. O inferno em vida que estamos vivendo. De tal sorte, o trem (a Terra e seu comboio humano) prossegue nos trilhos e no eixo de incerto destino, a saber-se quando irá (ou não) se descarrilar.
Resta-nos o ”carpe diem”. Aproveitarmos cada dia, valendo lembrar o que um poeta escreveu nos idos anos de 1970: “Companheiro, a vida é curta. Curta a vida, companheiro”. Não implica alienar-se, qualquer que seja o cidadão (ó trevas da ignorância!), em face duma dantesca realidade.
Ver e Dizer
É dito que há um poeta em todos nós. E “há que ter olhos de ver e palavras que dizer”, como sublinha Domício Proença Filho, doutor em Letras, crítico literário, escritor e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras. O prosador José Donizete Fraga é também poeta, embora, no recente lançamento de seus “Cantos Subterrâneos”, tenha declarado que não sabe fazer poemas. Humildade e modéstia suas. Há poesia em seus poemas, marcante poesia, enfática e envolvente. Simbolicamente, com habilidade de seu condutor, o trem se movimenta, o trem do inferno em vida, mas conduz também, cotidiana passageira, a poesia da vida, acima de tudo.
A prosa literária e os poemas de Fraga pontuam o ser humano enredado no emaranhado de situações existenciais, individuais e coletivas. Pelo ácido viés crítico, com a necessária denúncia e o solidário grito de humanidade, o poeta expõe o ser humano em face de suas vicissitudes.
São seres marcados por um contexto adverso e por seus próprios desatinos diante da realidade que os cerca e aniquila. São também as suas danações. Passageiros e prisioneiros a ferros de um trem que se move na esfera giratória da existência, desamparados e estrangeiros em seu próprio país (sob regência do Sistema), a pátria madrasta mesma que os pariu. Por certo que essa pátria se ressente das dores do parto social aos sacolejos do trem.
Goiano de Aurilândia, José Donizete Fraga, artista da palavra, e com a sua peculiar humildade, em verdade não é pouca coisa. Licenciado em Letras Modernas (Português/Inglês) pela União das Faculdades Alfredo Nasser, de Aparecida de Goiânia (Unifan). Donizete se pós-graduou (Lato sensu), pela mesma instituição, em Linguagem, Sociedade e Ensino –– Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Literatura Brasileira. Membro-fundador da Academia de Letras de Aparecida de Goiânia (cidade em que reside), bem como da Academia Goianiense de Letras é, também, filiado à seccional goiana da União Brasileira de Escritores (UBE-GO). Além de “Cantos Subterrâneos” (2015), publicou “O Sentinela” (contos, 2000), “O Decálogo da Ira” (romance, 2001), “O Livro Negro do Homem” (contos, 2004) e “Memória da Diáspora” (contos, 2006).
Valdivino Braz é escritor, jornalista e secretário-geral da seccional goiana da União Brasileira de Escritores (UBE-GO).