O Grande Inquisidor, de Dostoiévski: liberdade, poder e o drama da condição humana
22 novembro 2025 às 21h00

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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
No vasto edifício literário de “Os Irmãos Karamázov”, há uma passagem que se eleva como uma montanha dentro de um continente: o episódio do Grande Inquisidor. Ali, Fiódor Dostoiévski (1821-1881 — viveu 59 anos) parece suspender o curso da narrativa para entregar ao leitor uma meditação filosófica e espiritual que poderia existir de forma autônoma, como diálogo teatral, ensaio teológico ou manifesto sobre a condição humana. Cristo retorna à Terra, em plena Sevilha do século XVI, e, após realizar pequenos milagres, é preso como ameaça à ordem. Na cela, entra um cardeal da Inquisição, idoso, lúcido, frio — e é ele quem interroga Cristo. Nesta inversão dramática, o acusado torna-se eterno; o juiz, mortal. Cristo cala; o inquisidor fala. Esse contraste é a espinha dorsal da cena.

O cardeal apresenta a tese que sustenta todo o episódio: os homens não suportam a liberdade. Para ele, Cristo traiu a natureza humana ao entregar-lhe um peso que ela não consegue carregar. O ser humano, frágil e temeroso, deseja pão, ordem e direção — não a angústia da escolha. O inquisidor, então, afirma que a Igreja corrigiu o que Cristo deixou inacabado, substituindo a liberdade perigosa pela segurança do cuidado autoritário. Essa defesa da tutela — apresentada como forma de amor — é uma das críticas mais profundas já feitas às instituições que prometem proteção ao preço da submissão. Dostoiévski não acusa apenas a Igreja histórica, mas toca num dilema eterno: a libertação exige coragem, enquanto a servidão oferece descanso.
O silêncio de Cristo é mais devastador do que qualquer argumentação. Ele escuta, sem se defender, o longo discurso do inquisidor. A força literária da cena reside precisamente nessa oposição: de um lado, a razão instrumental, articulada, lógica, construída para justificar o poder; de outro, o silêncio absoluto de quem não precisa provar nada. O gesto final — o beijo de Cristo no velho cardeal — atinge o ponto máximo da simbologia do capítulo. Com esse beijo, Cristo oferece perdão, mas também devolve ao inquisidor o peso da própria consciência. O cardeal, perturbado, ordena que Ele desapareça e jamais volte. É a reação humana diante de uma verdade que não se pode suportar.

A crítica literária encontrou, nessa passagem, um campo fértil. George Steiner afirma que o capítulo é uma das mais profundas obras teológicas da literatura ocidental, um texto em que a razão autoritária revela seu limite diante da compaixão absoluta. Para Steiner, o inquisidor encarna o poder que, por medo do caos, submete o espírito humano. O beijo de Cristo, segundo ele, desarma o rigor lógico do cardeal porque o confronta com aquilo que a razão não pode dominar: o amor. Albert Camus, em O Homem Revoltado, lê o capítulo como uma antecipação dos totalitarismos modernos. O inquisidor seria uma representação do homem que prefere a ordem à justiça, que constrói sistemas de controle para evitar a angústia da existência. Cristo, silencioso, torna-se símbolo da liberdade que não negocia com o medo. Para Camus, o beijo é a revolta da ternura — uma rebeldia silenciosa que denuncia toda forma de opressão travestida de proteção.
O episódio transcende seu momento histórico e dialoga com questões de todas as épocas. Ele não fala apenas da Inquisição, mas dos mecanismos de poder das sociedades humanas: governos que prometem segurança, instituições que retiram a responsabilidade individual, estruturas que preferem a obediência à autonomia. Dostoiévski escreve no século XIX, mas descreve, com precisão profética, dilemas que marcariam o século XX e permanecem presentes no XXI. A pergunta que emerge do episódio — o que preferimos, liberdade ou segurança? — nunca deixou de ser atual.

Ler o Grande Inquisidor é enfrentar o espelho
Dentro do romance, a passagem ilumina os conflitos morais dos próprios Karamázov, especialmente os dilemas intelectuais de Ivan, que narra o “poema” ao irmão Aliócha. A cena funciona como eixo filosófico da obra, como se Dostoiévski abrisse uma fresta pela qual o leitor pode enxergar a profundidade abissal da alma humana. Ler o Grande Inquisidor é enfrentar o espelho. Cada leitor reconhece algo de si no inquisidor, que teme a liberdade, e algo de si no Cristo, que a deseja. É nessa duplicidade que a literatura se torna experiência existencial.
A permanência desse episódio na tradição literária se explica por sua capacidade de condensar grandes dilemas humanos em uma cena curta e intensa. Cristo, com seu silêncio, representa a liberdade interior que nenhuma instituição pode conceder ou retirar. O inquisidor, com seu discurso impecável, representa o poder que, por medo do sofrimento humano, transforma-se em tirania. A cena é, portanto, uma síntese da luta eterna entre a consciência e a autoridade, entre a liberdade e a segurança, entre o espírito e o medo.
Por essa razão, O Grande Inquisidor se coloca entre os textos mais extraordinários da literatura mundial. Não apenas porque revela a genialidade de Dostoiévski, mas porque continua a nos interpelar. A cada releitura, novas perguntas surgem, e as antigas retornam com força renovada. O capítulo não oferece respostas definitivas, porque sabe que elas dependem de cada época e de cada alma. A literatura, aqui, cumpre sua função máxima: não dizer o que devemos pensar, mas mostrar o que precisamos enfrentar.
Salatiel Soares Correia, escritor e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.
