“Nunca me senti tão livre e satisfeito escrevendo como agora, na poesia”, diz o escritor Márwio Câmara
07 maio 2023 às 00h00

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Pedro Grossmann Telles
Especial para o Jornal Opção
Márwio Câmara é escritor, jornalista e professor da área de Linguagens. Nos últimos dez anos, colaborou para diversos veículos de imprensa, assinando resenhas de livros, reportagens especiais e entrevistas com grandes nomes da literatura brasileira contemporânea.
Depois de encarar o solo da narrativa de ficção, com o livro de contos “Solidão e Outras Companhias” e o romance “Escobar”, o autor carioca retorna para a cena literária fazendo estreia na poesia por meio do volume “Sobre o Silêncio das Horas” (7Letras). Nele, as mazelas sociais misturam-se com as observações da vida cotidiana, num misto de reflexão e denúncia, alternando momentos profundamente líricos, ora um tanto quanto prosaicos.
Prestes a publicar o seu terceiro livro, Márwio Câmara fala sobre o seu novo projeto literário e o profundo amor pela escrita em entrevista para o Opção Cultural.

Você está lançando o seu terceiro livro e primeiro do gênero poesia, como foi trabalhar na composição desses poemas?
Apesar do meu imenso respeito pela poesia, confesso que nunca me imaginei publicando um livro do gênero, embora todos os meus textos de ficção apresentem uma abertura muito grande para essa coisa do poético. O próprio “Escobar”, o meu livro anterior, tinha um ritmo quase que versificado em alguns momentos da narrativa, além de eu tê-lo estruturado de uma forma pouco convencional. Quanto à composição dos poemas do meu novo livro, eles surgiram muito naturalmente. Metade deles enquanto eu voltava de uma viagem a São Paulo. Foi como ter sido contagiado por um sentimento que precisei dar cor e forma.
Do que falam esses poemas?
Sobre o que é ser humano dentro do nosso mundo que vem precisando cada vez mais de silêncio e reflexão.
A poesia é feita de silêncio?
De silêncio e reflexão. Estive pensando muito sobre a questão do silêncio nos últimos anos. Se analisarmos bem, ele anda presente nos momentos mais cruciais de nossa vida, mas não o percebemos, talvez por conta desse mar de informações e vozes e ultra velocidade das coisas em milésimos de segundo que estamos atravessados ou soterrados. Embora a literatura se faça por meio das palavras, exige da gente silêncio e introspecção.
Com o seu novo livro, você se enxerga agora como um poeta?
Eu me vejo como quem precisa se comunicar por meio da palavra, da linguagem literária, que é o espaço da minha liberdade de criação. O gênero em si não me interessa, no sentido de que não estou preso para a categoria daquilo que escrevo. Se é um texto em prosa ou verso, tanto faz. Como eu disse, nunca pensei que pudesse escrever um livro de poemas, porque acho um gênero extremamente difícil, mas o meu novo trabalho materializou-se dessa forma e estou feliz com o resultado.

Você também é professor e jornalista. Essas duas profissões contribuem para o seu trabalho como escritor?
Acredito que estar conectado com o mundo me ajuda a escrever. Como as minhas duas profissões estão diretamente ligadas com a comunicação, ambas me fazem ter mais perícia e criticidade com o meu material discursivo. Estar em sala de aula me cativa também a ter um pouco mais de esperança com o mundo. Ao contrário do que muitos pensam, os jovens brasileiros são cheios de sonhos e muito mais abertos do que os adultos à reflexão e à mudança.
Demissão de escola por causa do romance “Escobar”
Soube que você foi demitido no ano passado de uma escola particular por conta do seu último livro, o romance “Escobar”. Poderia falar sobre esse assunto?
Foi um momento bastante traumático para mim, uma vez que eu jamais imaginaria que pudesse perder o meu emprego por conta de um livro de ficção. A escola me demitiu sem nem sequer me externar o motivo. Fui saber do que se tratava semanas depois, através de alguns colegas e alunos. Senti-me bastante desrespeitado. Pelo o que parece, um pai reclamou na escola sobre o meu último romance, que traz uma questão voltada a uma relação amorosa entre um professor e uma aluna. Não envolvia um aspecto biográfico de minha vida. Falei sobre o tema por saber de casos e por achar necessário refletir sobre qualquer tipo de questão dentro da literatura. Mas as pessoas interpretam as coisas da forma como bem entendem sem o mínimo de criticidade. Como sou professor e a narrativa desse livro está em primeira pessoa, logo imaginaram que eu fosse o narrador-personagem, mesmo que na ficha catalográfica sinalize como uma obra de ficção. A escola preferiu se livrar do problema, sem minimamente conversar comigo ou mesmo ler o livro. Literatura sem reflexão dá nisso: interpretações completamente estapafúrdias e equivocadas.

Mas isso é terrível. Esse tipo de coisa vindo de uma escola deveria ser intolerável. É praticamente uma censura.
Ser demitido por conta de um livro de ficção só demonstra o tipo de país em que nós estamos.
Vale a pena escrever literatura no Brasil?
Escrevo somente quando sou contagiado por um mar de sentimentos e indagações. Preciso filtrar no papel cada uma dessas coisas que emergem de dentro de mim para voltar a ter paz de espírito. Não penso na questão mercadológica durante o processo de criação.
Mas estamos num país que valoriza a literatura?
Nós temos problemas estruturais relacionados à educação que fazem com que a literatura não receba tanto espaço na vida de todos os brasileiros, o que é uma pena.
Vale a pena ler Leonardo Valente e Camila Passatuto

O que você costuma ler normalmente?
Leio ficção, poesia, alguns ensaios de literatura, jornalismo literário, biografias e textos filosóficos.
Poderia recomendar algum livro que tenha lido recentemente?
Leonardo Valente escreveu um livro completamente arrebatador chamado “Criogenia de D”, uma prosa altamente experimental e diferente, além de muito bem escrita. Eu li o novo trabalho do poeta Eduardo Rosal que me deixou profundamente emocionado. É um livro ainda inédito que tive a honra de escrever o texto de orelha. O último romance do Agnaldo de Assis Nascimento, um autor da minha geração que, infelizmente, não está mais entre nós, é muito bom e merece ser reeditado. Esse romance do Agnaldo chama-se “Marte em Áries” e venceu o Prêmio Biblioteca Digital do Paraná.
Você me parece ser um grande leitor da literatura brasileira contemporânea.
Eu sou um entusiasta da literatura brasileira contemporânea, embora eu esteja lendo bem menos do que eu gostaria por conta da minha rotina docente. Há muitas coisas boas sendo produzidas tanto nas grandes quanto nas médias e pequenas editoras. Eu gostaria de citar a Camila Passatuto, uma autora de São Paulo que tem um texto bem diferente e interessante, o qual me impactou bastante quando a li pela primeira vez; e a Bruna Mitrano, do Rio, que é uma voz feminina bastante potente na poesia.

Seu livro, apesar de profundamente lírico, também tem um lado bastante prosaico.
Sem dúvida. Penso que é um livro que pode ser lido como um conjunto de pequenas narrativas. O meu lado prosador continua entranhado na minha poesia.
Você também trata de temas delicados como a violência e a pandemia. Como foi levar para o verso essas questões mais cáusticas?
Vivemos num país extremamente violento. Quando estava escrevendo esses poemas, queria dar forma também a essa triste realidade que nos assombra todos os dias. Quanto à pandemia, ela faz parte de um cenário de devastação e incertezas que vivemos nos últimos anos. Termos passado por tudo isso e estarmos vivos é um milagre.
Há um poema longuíssimo no livro cujo título é “Periferia”. Pode falar sobre ele?
Eu nasci na periferia e senti que precisava falar desse lugar de onde vim. Nunca havia feito isso antes. Ter escrito sobre esse lugar me fez olhar para as minhas raízes. Nasci no bairro de Santa Cruz, que fica localizado na Zona Oeste do Rio. Não sei agora, mas já foi um dos bairros com o índice de desenvolvimento humano mais baixo do Rio. A periferia é um espaço de total esquecimento do estado. Tive que correr atrás das coisas para que o sonho da literatura pudesse acontecer em minha vida. Falo evidentemente de escrever, ser publicado e lido. O trabalho como jornalista cultural de certa forma me ajudou a furar a bolha, sobretudo quando passei a escrever sobre livros na internet e também na imprensa. Ainda sobre a periferia, que é o lugar de onde vim, acho necessário que passemos a enxergá-la para além do lugar-comum. Há muita limitação, violência e pobreza nesses bairros, mas há também muita potência e vitalidade. Fico feliz, inclusive, que muitos artistas da periferia estejam conseguindo aparecer na cena nacional sem ficar nessa coisa restritivamente de nicho. É importante que outras vozes pouco exploradas em outros momentos da História ganhem espaço e visibilidade nessa seara ainda tão elitizada.

Como foi a sua infância?
Simples, porém muito rica de afeto da minha família, de brincadeiras de rua entre os amigos e de imaginação.
Os livros chegam quando em sua vida?
Na infância mesmo, com os livros de capa dura do Monteiro Lobato que eram de minha mãe, além dos que fui conhecendo dentro e fora da escola. Durante o processo de alfabetização, passei a ter um verdadeiro fascínio por escrever histórias no papel. Foi um caminho sem volta.
O que seria um grande verso?
Aquele que mexe profundamente com a sensibilidade do leitor.
Pretende escrever outro livro do gênero?
Quem sabe? Nunca me senti tão livre e satisfeito escrevendo como agora, na poesia.
Você já entrevistou bastante escritores brasileiros. Existe alguma entrevista favorita?
É difícil mencionar apenas uma única entrevista. Eu diria que as entrevistas que fiz com o José Castello, o Rogério Pereira, o João Carrascoza, o Paulo Henriques Britto, o Victor Heringer, o Ramon Nunes Melo, o Itamar Vieira Júnior, o Ivan Angelo e a Ana Maria Gonçalves são as minhas favoritas.
Ser professor e escritor no Brasil é…?
Uma alegria difícil.
Pedro Grossmann Telles é jornalista.
