Ambientado no Japão de 1960, o romance de Haruki Murakami é magistral quanto ao amor, vida e morte

Nascido em Kyoto, no Japão, Haruki Murakami é considerado um dos maiores nomes da literatura japonesa
Nascido em Kyoto, no Japão, Haruki Murakami é considerado um dos maiores nomes da literatura japonesa | Foto: Reprodução

“Certa vez, eu tive uma garota/Ou seria melhor eu dizer
Que ela me teve?
Ela me mostrou seu quarto/‘Não é uma graça?’
Norwegian wood
Conversamos até às duas/E, então, ela disse:
‘É hora de dormir’
E quando acordei/Eu estava sozinho
O pássaro havia voado”

The Beatles, “Norwegian Wood”.

Yago Rodrigues Alvim

Na tevê, 307 a 101 — ou algo assim. Ao menos, é o número que me recordo de sins e nãos pelo impeachment da presidente do Brasil, Dilma Rousseff. À mesa daquele domingo à noite, Murakami. Eu e mais alguns amigos nos reunimos em um japonês da cidade para conversar sobre a obra do japonês de Kyoto.

“Eu tinha 37 anos e estava a bordo de um Boeing 747”, começa ele a obra. No parágrafo que se segue, conta que uma música de fundo começou a tocar, uma vez o avião pousado e os sinais de proibido fumar apagados. “Era ‘Norwegian Wood’, dos Beatles.”

A canção intitula o romance publicado originalmente em 1987. “Noruwei no mori” (título original) logo ganhou o Japão. Foram mais de 4 milhões de exemplares vendidos, pelo que diz a contracapa.

Alguns meses antes, tínhamos escolhido a obra para o nosso clube do livro, apelidado “High Society do Sebo”. Numa pausa, o livro acabou dando espaço a “Memórias do Subsolo”, do russo Fiódor Dostoiévski. Para Haruki Murakami (nome completo do autor) voltamos.

Prestes a completar seus 20 anos, o jovem Toru Watanabe reencontra Naoko, antiga namorada de seu melhor amigo, o jovem Kizuki que comete suicídio, marcando tragicamente a vida de ambos. Entre longas caminhadas e conversas, Toru se apaixona por Naoko. A história se segue com Midori, uma jovem extrovertida que ele conhece nas aulas de teatro. Assim, Toru se vê entre dois amores.

Em 2010, a obra de Murakami ganhou os cinemas. O longa-metragem é dirigido por Anh Hung Tran | Foto: Reprodução

Muito mais que uma história de amor, “Norwegian Wood” é uma obra de amadurecimento. Sem dúvidas, junto ao grande tema da transição para vida adulta se encontra a morte, como seiva que percorre por entre as páginas do romance. Logo no início, no capítulo 2, de 11 (entre os quais se dividem, não tão regularmente, 359 páginas), o próprio protagonista, e também narrador de todo o texto, diz:

Porém, por mais que eu me empenhasse em destruir as lembranças, restava dentro de mim algo semelhante a uma massa de ar indistinta. Com o passar do tempo, essa massa começou a tomar uma forma simples e nítida. Posso traduzir essa forma em palavras. Era algo assim:

A morte não é o oposto da vida, mas uma de suas partes constituintes.

(…)

Foi sentindo essa massa de ar dentro de mim que vi chegar a primavera dos meus 18 anos. Mas ao mesmo tempo eu me esforçava para não me tornar sério. Tinha a ligeira sensação de que me tornar sério não era necessariamente sinônimo de chegar mais perto da verdade. Porém, por mais que eu refletisse, a morte era um fato pungente. (…) Em plena vida, tudo girava em torno da morte.

Ao terminar o último parágrafo do livro, é repentina a vontade de voltar às primeiras páginas. Com maestria, Murakami termina seu texto falando de “resquícios de memória” — ao ler o diálogo que Toru tem com a personagem Reiko, o riso dócil vem faceiro na brincadeira que o jovem faz com a definição que a própria Reiko dá de si, páginas antes.

— Estou acabada como ser humano. O que você tem diante dos olhos é um resquício da memória. O que havia de mais importante dentro de mim morreu há muito tempo e eu só funciono com a memória que restou.

Toru a conhece em um momento importante do livro, que não caberia contar, resguardando spoilers. Dá para dizer que em Reiko, confia uma sincera amizade. Ela la­menta as cartas que Toru havia enviado, tempos antes, e que haviam sido queimadas. Ele ensina, então:

— Cartas não passam de papel — falei. — Queime-as, mas o que tiver de permanecer no coração permanecerá; guarda-as, mas o que tiver de desaparecer, desaparecerá.

E é com memórias que o livro é feito. Está ali, explicitado ao fim do capítulo 1. Foi com 37 anos que ele, Toru (ou Murakami, uma vez que a obra tem traços autobiográficos), se viu perturbado e com algo revolvendo violentamente dentro de si. Era “Norwegian Wood” que tocava; a canção favorita de Naoko. No final das contas, diz no capítulo, só poderia preencher o receptáculo imperfeito das frases com lembranças e recordações imperfeitas.

Pensar nisso, como leitor, dá uma baita dor do que é a vida. Um vão de memórias e só.

Clube

Do “High Society do Sebo”, a graduada em Direito Anna Luísa Braga me escreveu as seguintes palavras: “Após 20 e poucos anos de vida e mais uma noite para falar sobre ‘Norwegian Wood’, voltei para casa com uma pergunta: ‘O medo de amar e o medo de morrer são a mesma coisa? Ou ambos estão intrinsecamente ligados à dor de crescer?’. Uso as palavras ‘medo’ e ‘dor’ não porque acho que amar, crescer e até morrer sejam fatos negativos, mas por se unirem por uma variável determinante que antecede todos esses acontecimentos e que exige tais palavras, o desconhecido”.

Publicado em 1987, o livro foi um sucesso. Vendeu 4 milhões de exemplares | Foto: Reprodução

Já a graduanda em Design de Moda Isadora Arraes se disse surpreendida por Murakami. A escrita fluída a fez imergir por horas na leitura — não à toa que leu as 359 páginas em três dias.

— “Norwegian Wood” retrata a adolescência japonesa na efervescência da década de 1960, seus movimentos e peculiaridades — como os recorrentes suicídios. Os ensinamentos de morte e vida, musicalidade e sexo orgânico transforma a adolescência de Toru em um incrível romance.

1960, Bach e Hung Tran

De fato, a obra tem como pano de fundo os anos de 1960 e toda esta geração se resplende na obra de Murakami, considerado um dos autores mais importantes da literatura japonesa. A geografia está em descrições apuradas (como a das estações do ano) e em localidade, desde estações de trem a regiões e livrarias. Trajes, modos de vida e todo um olhar para o mundo se encontram nas frases.

Da culinária, basta contar que, no encontro do clube do livro, pedimos um prato especial: pepino fresco enrolado em alga. No capítulo 7, Toru prepara para si e para o pai de Midori, que está acamado em um hospital, o mesmo petisco. É de salivar a boca de tão singela a descrição.

Além de Beatles, diversas canções embalam o romance. “Norwegian Wood” é essencialmente musical. Tanto que criamos uma playlist, com as tantas músicas citadas. Muito disso é graças à personagem Reiko — não que os demais personagens não sejam musicais. Henry Mancini, Bill Evans, muita bossa e Bach se encontram ao lado dos caras de Liverpool, como diz ela, que conheciam bem os dissabores da vida, e a gentileza.

A música “Norwegian Wood” integra o álbum “Rubber Soul”, lançado pelos Beatles em 1965 | Foto: Reprodução

A obra de Murakami ganhou os cinemas em 2010. A produção japonesa “Noruwei No Mori” (traduzido para o português como “Como na Canção dos Beatles”) foi dirigida por Anh Hung Tran e traz no elenco Rinko Kikuchi, Kenichi Matsuyama e Kiko Mizuhara.

Por fim, vale lembrar alguns trechos da obra (não ordenados conforme o texto), com a tradução pontual e singela de Jefferson José Teixeira (1ª edição da Alfaguara/Editora Objetiva), que mais dizem do todo que qualquer resenha ou outra tentativa parecida. Seguem:

Na penumbra primaveril, as flores pareciam uma carne viva irrompendo de uma ferida infeccionada. O jardim se enchia do aroma putrefato, doce e pesado daquela carne podre. Foi então que pensei no corpo de Naoko. Seu lindo corpo estendido na escuridão, e surgindo de sua pele inúmeros brotos de plantas, pequenos e verdes, oscilando ligeiramente ao sabor da brisa. Por que um corpo tão magnífico tinha de adoecer? Por que ele não deixavam Naoko em paz?

Para início de conversa, garotas da minha idade nunca usam a palavra “justiça”. Garotas comuns são basicamente indiferentes quanto ao fato de as coisas serem ou não justas. Garotas comuns normalmente se preocupam muito mais em saber o que é bonito e como podem ser felizes do que com a questão de alguma coisa ser justa. “Justiça” é, sem dúvida, uma palavra de uso exclusivo masculino. Mesmo assim, sinto que ela define bem que eu sou neste exato momento. Para mim, saber o que é belo e como posso ser feliz são temas difíceis e intrincados, e acabo apegando-me a outros critérios, como por exemplo a justiça, a franqueza ou a universalidade.

Do outro lado da linha, Midori permaneceu um longo tempo calada. O silêncio prosseguiu exatamente como se toda a chuva fina do mundo caísse sobre todos os gramados do mundo. Enquanto isso, de olhos fechados, eu apertava a testa no vidro da cabine. Midori finalmente rompeu o silêncio.

Pensar nisso me deixa insuportavelmente triste. Porque Naoko nunca chegou sequer a me amar.