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Edmar Monteiro Filho

Como situar no tempo a origem da curiosidade do ser humano a respeito de sua própria aparência? Imaginemos nossos remotos antepassados, após se reconhecerem nas figuras refletidas em espelhos d’água, construindo artefatos destinados a reproduzir o mesmo efeito, inicialmente em metal — antes de 2.000 a.C. —, até o surgimento dos espelhos de vidro polido, por volta do século XVI. Mas gostaria de avançar um pouco nesta reflexão sobre o processo de conhecimento da própria imagem: o desejo de preservá-la para a posteridade através do retrato.

“Imagem de uma pessoa (real ou imaginária), reproduzida por pintura, desenho, fotografia etc.”, segundo o dicionário, o retrato foi utilizado desde a antiguidade como forma de evidenciar e homenagear o retratado. Torna-se gênero autônomo dentro da história da pintura a partir do século XIV e passa a ser encomendado por pessoas de posses que desejavam projetar-se publicamente e preservar sua imagem ao longo do tempo.

Alessandro Baricco, escritor italiano | Foto: Leonel Rocha/Milênio

Talvez o mais célebre retrato seja a “Mona Lisa”, de Da Vinci, pintado por volta de 1506, que ainda hoje suscita especulações em torno da identidade do modelo e de seu sorriso enigmático. Com Rembrandt, no século XVII, o retrato ganha novo status, ampliando as possibilidades interpretativas. No século XIX, os retratos deixam de ser privilégio das elites e os artistas, cada vez mais, utilizam as imagens de pessoas de diferentes condições sociais como forma de reflexão, contestação e denúncia. Com o surgimento da fotografia, o retrato populariza-se tremendamente, assumindo a condição de reprodução absolutamente fidedigna da pessoa retratada. Posteriormente, as discussões teóricas acerca da subjetividade e das escolhas presentes no olhar do fotógrafo trarão nova complexidade ao tema da representação, inaugurando um debate que perdura até os nossos dias.

Mesmo em tempos de fotografia digital, selfies, superexposição nas redes sociais, o retrato sobrevive como representação artística, ganhando novos sentidos e possibilidades. A literatura, por sua vez, foi usada para compor retratos de incontáveis personagens reais ou imaginadas, via olhares de terceiros ou por meio das autobiografias – esses selfies de palavras. Interessante pensar nas descrições meticulosas dos autores do século XIX como instantâneos de seus heróis ficcionais ou nos extensos volumes escritos por biógrafos para retratar a personalidade de figuras públicas ou de ilustres desconhecidos. O que o escritor italiano Alessandro Baricco propõe, entretanto, é algo um pouco diverso.

O escritor “copista”

Em “Mr. Gwyn” (Alfaguara, 224 páginas, tradução de Joana Angélica d’Melo), Baricco apresenta o protagonista, renomado escritor que, repentinamente enfastiado do glamoroso mundo editorial, decide parar definitivamente de escrever, para desespero de seu editor e incredulidade dos fãs.

Enquanto resiste às investidas que buscam fazê-lo reconsiderar, o personagem se põe em busca de uma nova forma para se expressar, decidindo-se, afinal, pela criação de retratos por meio de palavras.

O que Jasper Gwyn deseja, entretanto, não é compor meras apresentações das características físicas e/ou psicológicas dos modelos. Ao modo dos retratistas do passado, exige que cada modelo compareça diariamente ao estúdio, onde deverá “posar” sob condições específicas: despido, em completo silêncio e mantendo total sigilo sobre as condições e resultados do trabalho. Assim, o personagem dá início a sua nova e inusitada atividade, com surpreendentes resultados. A relação do artista com a experiência que propõe vai aos poucos expondo características ocultas de sua personalidade, como se o seu próprio reflexo começasse a surgir por entre os retratos que vai compondo. Ao mesmo tempo, entretanto, o sucesso da experiência como “copista” vai expondo sua identidade, comprometendo sua intenção de permanecer anônimo.

Baricco é artífice de refinados relatos, cujas sutilezas transparecem pouco a pouco aos olhos do leitor atento. A preparação do estúdio do artista, por exemplo, com o fundo musical específico, o mobiliário mínimo e a iluminação proporcionada por lâmpadas especialmente produzidas, evidencia a relação entre a progressiva sombra que vai tomando conta do espaço e o transcorrer do tempo necessário à criação de cada retrato. Esse jogo de claro e escuro, que reproduz o próprio contraponto entre anonimato e fama, objeto das grandes angústias do escritor, oferece as melhores surpresas do enredo, surgidas à medida que as luzes da história vão se apagando.

O que resta ao final da leitura de “Mr. Gwyn” é a certeza de estar diante de um fascinante personagem, cujo retrato vai sendo composto página a página, como um negativo vai lentamente revelando seus detalhes, por obra de uma combinação especial de substâncias, na paciência do quarto escuro.

Edmar Monteiro é crítico literário. É colaborador do Jornal Opção. E-mail: [email protected]