Morre o homem que superou a narrativa do apontar de dedos
13 dezembro 2025 às 21h00

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Quando penso no amigo Saulo, que morreu aos 33 anos, acredito que me aproximo de entender o que o fazia diferente. Ele era cético com a possibilidade de resolver incômodos existenciais e contente apesar disso. Sem fazer julgamentos morais, não buscava por culpados. Havia a consciência das falhas humanas e alegria na aceitação desses defeitos.
No sábado, 29, a morte de um de meus melhores amigos me colocou pensando na morte de toda a minha geração. O que há com essas pessoas nascidas entre 1981 e 1996? Como vão pensar em nós quando tivermos nos unido a Saulo, que morreu aos 33 anos de idade? O que é que havia de tão diferente nele? Seu falecimento causou tamanha comoção que virou notícia em outro jornal (teria odiado isso, discreto como era. Aliás, era leitor do Jornal Opção).
Meu amigo era um ponto fora da curva de distribuição normal. Era simples, pouco ligado às redes sociais, leitor voraz, atento ao noticiário, sem preconceitos em sua vida intelectual, e muito sociável. Parecia ter a resposta para os problemas que acometem nossa geração, que agora deveria estar no auge, mas que se sente paralisada em ansiedade social e fardos emocionais. Além da tristeza de ter perdido uma amizade de 18 anos, ficou a impressão de que eu deveria ter buscado entender em vida o que o fazia diferente. Disponível como era, acreditei que sempre estaria presente.
A melhor descrição da geração millennial é de Charles Baxter. No ensaio “Narrativas Disfuncionais”, o crítico literário escreve sobre a ficção produzida por essa geração, e o tipo de ficção que mais ressoa com pessoas que hoje têm 29 a 44 anos de idade. (O livro é “Burning Down the House”, uma obra prima da crítica literária, sem edição em português.) Já há algumas décadas, a principal forma narrativa é a “Ficção de apontar o dedo”, diz Baxter. São narrativas sem vilões ou admissão da responsabilidade, de absoluto relativismo moral.
Baxter descreve: “Nessas obras, pessoas e eventos são frequentemente acusados de transformar o protagonista no tipo de pessoa que ele é, geralmente uma pessoa infeliz. E acabou. Quando a culpa é atribuída, a história termina. Em oficinas de escrita criativa, esse tipo de narrativa costuma ser a regra, e não a exceção. Provavelmente, esse modelo de narrativa surgiu porque grande parte da população hoje se sente confusa e impotente, como frequentemente acontece em sociedades de massa, onde os mecanismos de poder são cuidadosamente mascarados”.

“Para pessoas com empregos precários, dívidas crescentes, parceiros infiéis e pais abusivos, o aspecto mais interessante da vida é a infelicidade, seu peso constante e opressivo. Mas, em uma cultura de consumo, espera-se que as pessoas sejam felizes. Esse é o mito do marketing. Você começa a se sentir enganado se não for feliz. Nesse clima consumista, os infelizes perplexos não sabem o que a vida está tentando lhes dizer, e não se sentem no controle de sua própria existência. Para essas pessoas, nenhuma atitude que um personagem possa tomar será tão interessante quanto a constância de sua infelicidade.”
Desta forma também, meu amigo estava fora da maioria — não havia nele o peso de infelicidade alguma, muito pelo contrário. Se importando pouco com o que pensavam sobre ele, detestava a cultura do consumo. Sei que isso é uma ilusão: é impossível ficar fora da sociedade em que se está inserido, e o “não se importar com opiniões alheias” era, na realidade, uma tentativa de se afastar das pessoas que ele às vezes temia; mas o contraste de comportamentos permanece.
Mais um contraste de comportamento: meu amigo lia livros e jornais, e usava redes sociais menos que a média da geração. Os millennials encaram o celular em média 7 horas por dia (estudo da USP de 2023). Nas redes sociais, a pluralidade de versões sobre os fatos impede fechamento de arcos ou conclusões definitivas. A pessoa mais culpada pode atravessar os dias negando sua responsabilidade, sem nunca ser confrontada, e terminar convencendo seus seguidores.
Baxter traça a origem do problema em sete anos antes do nascimento dos millennials, com a renúncia do presidente americano Richard Nixon. Em vez de dizer “eu cometi um erro”, o ex-presidente americano afirmou “erros foram cometidos”, e passou o restante da vida escrevendo livros de memórias para se livrar da culpa por Watergate, criando narrativas alternativas (o termo em voga na era da pós-verdade).
Em 1974, quando o padrão era o da narrativa unificada por poucos veículos de imprensa, que escreviam os fatos por relações de causa e efeito, Nixon inaugurava uma forma nova de contar a história — uma forma irracional e que o livrava da responsabilidade. Hoje, o embaraço criado pela dúvida de ter de considerar informações demais se tornou o problema característico de nossa geração.
É claro que a solução para os problemas desta geração não é meramente mais amor (a geração dos Baby Boomers hippies tentou isso na década de 60), e nem a vida mais simples desconectada (dez anos atrasada, a geração brasileira dos anos 70 tentou a conexão cultural com as raízes idealizadas. As gerações seguintes ficarem perplexas com a discrepância entre o Brasil folclórico cantado e a brutal desigualdade social verificada na realidade). É improvável que a solução para o sentimento de impotência e embaraço seja a criação de um novo mito da moda.
Cada geração acredita em seus mitos, e o mito perverso na cabeça dos millennials é: na infância, todos recebem um ferimento emocional grave e, por causa desse ferimento, todas as coisas boas que acontecem depois são tornadas sem sentido e todas as coisas ruins são tornadas altamente significativas. “Acreditam que o trabalho da vida de cada um é descobrir e nomear o ferimento que lhe causaram”, escreve Baxter. Em um mundo onde ninguém admite responsabilidade, nasce a narrativa do apontar de dedos em busca de culpados.
Quando penso novamente em Saulo, acredito que me aproximo de entender o que o fazia diferente. Ele era cético com a possibilidade de resolver incômodos existenciais e contente apesar disso. Sem fazer julgamentos morais, não buscava por culpados. Havia a consciência das falhas humanas e alegria na aceitação desses defeitos. “A situação é precária e o que você pode fazer a respeito disso? Julgamentos morais? ou se virar com o tempo que lhe foi dado?” A desilusão leva ao desprendimento, e não ao trauma. Amar e sentir-se livre para ser simples é uma habilidade que só vem após a abnegação do ego — outra ideia avessa para minha geração altamente individualista.
