Monteiro Lobato: o colocador de pronomes
30 junho 2024 às 00h00

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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
José Bento Renato Monteiro Lobato, ou simplesmente Monteiro Lobato (1882-1948), foi um profícuo intelectual brasileiro com atuação em diversas áreas do conhecimento. Foi advogado, promotor, escritor, editor, tradutor e ativista, nascido em Taubaté, São Paulo. Seu livro de ponta foi “Urupês”, uma coletânea de contos. Foi precursor, no Brasil, da literatura educativa infanto-juvenil, cujos livros marcaram várias gerações e continuam encantando as crianças nos dias atuais.
Monteiro Lobato foi o escritor brasileiro mais traduzido na França na década de 1920, um fato para se notar, devido a pouca visibilidade de nossos escritores no exterior. Grandes foram as dificuldades da literatura nacional para ultrapassar as fronteiras do país, inclusive para Machado de Assis, cujas primeiras traduções de sua obra para o francês deixaram muito a desejar. Hoje, os autores mais traduzidos na França são Jorge Amado e Paulo Coelho; o Bruxo do Cosme Velho ocupa o terceiro lugar.
A literatura de Monteiro Lobato está inserida na fase pré-modernista, mas seus livros infanto-juvenis contêm elementos do realismo fantástico e do folclore brasileiro, este último presente também no modernismo. “O Sítio do Picapau Amarelo”, “Reinações de Narizinho” e “O Marquês de Rabicó” são três de seus livros mais famosos dedicados à infância e à adolescência.
O pré-modernismo foi uma fase de transição, a partir de 1902 até 1922, quando teve início o período modernista. A literatura feita naquele momento histórico teve traço crítico bem acentuado e Lima Barreto (1881-1922) mostra-se como um de seus principais autores que, ao lado de Monteiro Lobato, praticaram uma literatura mais crítica e menos romântica. Além desses dois grandes escritores, sobressaíram-se Graça Aranha (1868-1931) e Augusto dos Anjos (1884-1914), o poeta do trágico e do funesto.
Monteiro Lobato tem sido criticado, hoje em dia, por expressões em seus livros creditadas como racistas. Seja como for, ele deve ser lido como um representante de seu tempo.
“O Colocador de Pronomes”: conto de Lobato
O conto “O Colocador de Pronomes”, publicado em 1924, é uma joia da literatura brasileira, comparável às obras da categoria de “O Alienista”, do mestre Machado de Assis (1839-1908). Seu tema central é envolvente e hilário, uma tragicomédia, muito bem estruturada pelo autor, cujo domínio do vernáculo e apurado senso crítico lhe dão também poder sobre a ironia e o bom humor. “O Colocador de Pronomes” apresenta a questão do uso correto da língua brasileira e a adoção de estrangeirismos, um assunto preocupante no início do século XX, porém tratado por ele com leveza e comicidade.

Versa sobre as agruras de um solteirão, o professor Aldrovando Cantagalo, obcecado pelo estudo da gramática, com predominância na colocação pronominal. Ele nasceu e morreu em decorrência da má colocação de pronomes.
Vejamos como se deu esta história. Seu pai, tendo pedido a mão de sua amada em casamento, Laurinha, mandou-lhe um bilhete, que foi interceptado pelo pai da moça. Este, velhacamente, fez a interpretação do texto: “Vassuncê mandou este bilhete à Laurinha dizendo que ama-“lhe”. Se amasse a ela deveria dizer “amo-te”. Dizendo “amo-lhe” declara que ama a uma terceira pessoa, que só pode ser a Maria do Carmo”. E, com este argumento gramatical, o velho espertalhão obrigou o escrevente a se casar com “a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica, manca da perna esquerda e um tanto aluada”. Este foi o primeiro erro de má colocação de pronome e início da desventurada existência do protagonista da história.
Dessa união nasceu o Aldrovando, o malfadado personagem. Magro, seco, careca, celibatário convicto, dava dez horas de aulas por dia. Obcecado pela filologia, passava horas absorvendo os ensinamentos dos livros de gramática. Seu idílio era com os clássicos lusitanos. Vivia exclusivamente para os livros, e não sabia o que se passava no mundo. Estava alheio a tudo, menos às suas dores nos rins. Mas seu maior sofrimento vinha da leitura dos jornais, das tabuletas das lojas e do falar do populacho. Não se conformava com os francesismos na imprensa: “Chama você língua à garabulha bordalenga que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos, deletreemo-lo ao acaso.” E assim seu sofrimento aumentava a cada deslize na língua pátria. Uma mudança no bloco monolítico e ortodoxo do idioma para se adaptar às novas circunstâncias era algo inaceitável pelo professor Aldrovando Cantagalo.
Quis então dar a prelo um grande e vastíssimo livro, onde entesouraria toda a sua sapiência sobre a última flor do Lácio, já não tão bela e cada vez mais inculta, dando enfoque especial aos pronomes.
Depois de inúmeros e cansativos dias, centenas de dias e noites de exaustão, construindo e burilando sua pérola rara, finalmente descarregaram em sua casa as centenas de livros que, ele imaginara, venderia todos, o que não aconteceria. Ao abrir vários exemplares percebeu um erro tenebroso e inesperado. Dedicara o livro a Frei Luís de Souza (1555-1632), escritor e sacerdote católico: “À memória daquele que me sabe as dores — o autor”. No entanto veio grafado: “daquele QUE SABE-ME as dores”.
O golpe foi fatal. Professor Aldrovando contorceu-se de dores, violentíssimas. Ergueu os olhos aos céus, a Frei Luís de Sousa, e exclamou: “Luís, Lamma Sabachtani!”, repetindo as palavras do Senhor Jesus na cruz. E o pobre morreu, mais pela dor gramatical do que pelas violentíssimas cólicas nas entranhas.
E as lutas de Aldrovando continuam nos dias de hoje, ferrenhas. O uso dos pronomes foi parar no escambau, principalmente em terras goianas, onde os pronomes oblíquos são artigos de luxo, sujeitos às taxas de preciosismo literário. Data vênia, incluo-me na lista dos que procuram não cair no infortúnio do erro, mas que nem sempre conseguem, perdidos nos emaranhados das inúmeras regras e exceções à regra vernaculares, e muitas vezes aderindo ao usual para fugir à pecha de pernósticos.
Se Aldrovando Cantagalo voltasse ao mundo, para uma pequena voltinha que fosse, cairia fulminado mais uma vez. Não suportaria os galicismos e anglicismos e as incorreções generalizadas em seu vilipendiado idioma. Mas as lutas não levaram ninguém à morte (com exceção de Aldrovando), apenas a língua portuguesa brasileira, que está em coma profundo, em estado periclitante, é considerada a próxima vítima fatal.
Marina Teixeira da Silva Canedo é poeta e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.
