“Em tudo amar e servir” — Santo Inácio de Loyola

Marina Teixeira da Silva Canedo

Especial para o Jornal Opção

Foram 2 mil quilômetros percorridos, de carro, para chegarmos às ruínas das missões jesuíticas no Paraguai, na fronteira sul com a Argentina.

Um roteiro interessante, e que ofereceu a oportunidade de constatar a grande influência da Igreja Católica no país vizinho.

Se a religião está firmemente introjetada na população, não se pode afirmar, mas tudo indica que sim.

O que o turista vê é a face clara e visível, a materialização da fé nas construções de igrejas e capelas ao longo das rodovias, sempre que há povoamento, e com uma frequência surpreendente. Igrejas e capelas pequenas, mas primorosas.

Vai daí imaginar a influência do catolicismo na formação da índole do povo paraguaio. No percurso de Asunción a Encarnación, de 400 quilômetros, as cidades e localidades têm, na primeira metade, nomes indígenas, e foram fundadas pelos padres da ordem franciscana.

Na segunda metade, elas levam nomes de santos e termos católicos, como Concepción, Encarnación (e também Asunción), e foram fundadas pelos padres jesuítas; estão no Estado de Misiones, outra marcante alusão à influência da Igreja Católica, particularmente dos jesuítas.

A chegada aos sítios arqueológicos não acontece sem grande emoção. É um burburinho na alma. Uma visão arrebatadora.

O perfil negro das construções, que persistem em permanecer, remete-nos, imediatamente, ao passado colonial e aos ideais visionários dos padres jesuítas.

Marina Canedo nas ruínas jesuíticas no Paraguai Foto Divulgação
Marina Canedo nas ruínas de missão jesuítica no Paraguai | Foto: Divulgação

Apesar de em ruínas, as monumentais construções evidenciam o grande projeto jesuítico de conquista das almas dos indígenas guaranis para a fé católica. Toda essa grandiosidade, no meio do nada, de um continente ainda desabitado, destinava-se a acolhê-los e oferecer aos indígenas os fundamentos da fé cristã, aliados às atividades de sobrevivência, como plantações, artesanatos e escolas, para a educação integral dos guaranis. As missões jesuíticas foram tidas, por importantes intelectuais europeus, como a primeira grande experiência de sociedades comunais igualitárias e fraternas.

As missões, ou reduções jesuíticas, representaram um projeto da Igreja Católica que, juntamente com os reinos de Portugal e Espanha, visavam a evangelização e conquista de terras distantes no Oriente e no Novo Mundo. A Companhia de Jesus, ordem criada por Inácio de Loyola, foi um dos grandes instrumentos da Contra Reforma. Esta tinha por finalidade combater a Reforma Protestante, cuja importância aumentava sensivelmente na Europa.

Inácio de Loyola, nascido Iñigo López de Oñaz y Loyola (1491-1556), teve seu destino marcado por revelações espirituais. Escreveu sua principal obra, Exercícios Espirituais, utilizada até hoje pelos papas e principais membros da igreja em ocasiões de retiros contemplativos.

A Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loyola, foi, em 1534, reconhecida pelo papa Clemente XIV. Suas atividades foram objeto de grandes polêmicas e, regularmente, eram questionadas pelo tribunal da Inquisição. No entanto, Inácio de Loyola conseguiu arrebanhar um número razoável de adeptos.

Os jesuítas foram o elemento moral nos primórdios de nossa civilização — Lima Barreto

Os primeiros jesuítas enviados para a América foram José de Anchieta (espanhol) e Manuel da Nóbrega (português) em 1549. Na América Espanhola, José de Acosta, em 1576.

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Construção das missões jesuíticas no Paraguai | Foto: Divulgação

O que se viu no Novo Mundo foi o crescimento de grandes conglomerados de comunidades indígenas, dirigidos pelos padres jesuítas. Ali eles moravam, plantavam e aprendiam espanhol, latim e a escrita da língua guarani. Aprendiam também música e a fabricação de instrumentos musicais.

As principais reduções foram criadas no Paraguai, e estão tombadas pela Unesco como Patrimônio Histórico da Humanidade.

Das três grandes missões, conhecemos as duas mais ricas e importantes: Santísima Trinidad del Paraná e Jesús de Tavanrangüé.

Os traços de uma cultura barroca hispano-guarani estão ali representados, dentro da portentosa arquitetura hispano-mourisca.

O sul do Brasil, Argentina e Bolívia também tiveram importantes missões jesuíticas.

O objetivo declarado das missões era a evangelização dos indígenas e sua proteção contra a sanha escravocrata dos bandeirantes e da população branca, que necessitava de mão-de-obra para o trabalho na lavoura e nas cidades. O grande lema dos jesuítas foi e é “Ad Majorem Dei Gloriam” (pela maior glória de Deus).

Padre Antônio Vieira, no século 17, já falava sobre aqueles que “roubam cidades e reinos” e “despojam os povos” | Foto: Reprodução

Mas os percalços na trajetória da Companhia foram muitos. Desde seu início os jesuítas foram motivo de desconfiança dentro das demais ordens religiosas.

Essas disputas religiosas tiveram seu ápice com a expulsão dos jesuítas da América.

Como conta o crítico literário e pesquisador Alfredo Bosi (“Padre Antônio Vieira — Essencial”, Companhia das Letras, 760 páginas), os jesuítas foram difamados e acusados de quererem um governo independente, livre de Portugal e Espanha.

Essa versão foi posteriormente acreditada como mentirosa, cujo objetivo era atacar a Companhia de Jesus e deixar os indígenas disponíveis para o trabalho escravo. No entanto, o mal estava feito. O marquês de Pombal, secretário de Estado do Reino, ordenou a expulsão de todos os jesuítas dos territórios portugueses, em 1759. Em 1767, foi a vez da expulsão dos jesuítas pela coroa espanhola. O sonho chegava ao fim. Os indígenas ficaram sem a proteção de seus tutores e os governos e caçadores de escravos ficaram livres para fazer o que bem entendessem.

Contudo, como foi possível a destruição de construções tão sólidas, feitas com grandes blocos de pedras e que, aparentemente, resistiriam ao tempo e às intempéries?

A principal causa, a Guerra Guaranítica, que durou de 1754 a 1756, foi um conflito armado e violento dos exércitos de Portugal e Espanha e que massacrou e destruiu boa parte das missões jesuíticas. Além disso, os bandeirantes, em incursões que chegavam até o Paraguai, travaram inúmeros combates contra os jesuítas e indígenas. Ao final, venceram os mais fortes.

Hoje, as ruínas das reduções surgem como testemunhas do passado visionário de uma ordem religiosa, a Companhia de Jesus, que sonhou, um dia, em transformar um mandamento cristão em uma realidade concreta.

As teorias acusatórias contra os jesuítas mostram-se, hoje, infundadas. A força férrea para a imposição da jurisdição dos reinos português e espanhol demonstra o temor da perda de territórios. Se os jesuítas sonharam com isto, nada se sabe de concreto.

No vai e vem do tempo e do processo político, a Companhia de Jesus foi restaurada em 1814 pelo papa Pio VII, mas a expulsão dos jesuítas só foi formalmente anulada em Portugal em 1840, por decreto real.

O Brasil e o padre António Vieira

      António Vieira

O céu strela o azul e tem grandeza.

Este, que teve a fama e à glória tem,

Imperador da língua portuguesa,

Foi-nos um céu também.

Fernando Pessoa

No Brasil, um grande jesuíta notabilizou-se pela defesa dos indígenas brasileiros: foi o padre Antônio Vieira (1608-1697). Notabilizou-se como político, orador sacro e missionário. Foi considerado, por Fernando Pessoa, como o “imperador da língua portuguesa”. Pessoa proferiu uma frase emblemática, que ficou na história, e que atesta a importância do idioma pátrio: “Minha pátria é a língua portuguesa”.

Vieira veio para o Brasil, Bahia, com 6 anos de idade, e sua vida foi um perpétuo trafegar entre Portugal e Brasil. Em Portugal, exerceu protagonismo como conselheiro do rei, d. João IV, e depois de seus filhos Afonso VI e d. Pedro. Seus famosos Sermões eram esperados com grande expectativa nas igrejas, tanto em Portugal como no Brasil.

O trabalho do padre António Vieira em defesa dos indígenas brasileiros despertou a ira de vários governadores e autoridades do Maranhão e Pará, que viam nele impedimento para a escravização dos indígenas, o que se refletia na falta de mão-de-obra para o trabalho. Muitos de suas cartas e sermões foram escritos dentro de canoas, em seu deslocamento para as aldeias indígenas. Seu trabalho foi árduo e cheio de percalços, entre estes o enfrentamento dos tribunais da Inquisição, muitas vezes pela sua defesa dos judeus e cristãos novos.

A vida do padre Antônio Vieira obedeceu ao ritual jesuítico de defesa incessante da vida dos silvícolas.

Quanto à escravização dos africanos, sua atitude foi de indiferença e até de apoio a ela. Foi um paradoxo, em sua salvaguarda pelos direitos fundamentais do homem.

Padre Vieira sofreu todas as agruras de sua opção missionária e humanitária, mas nunca negou seus ideais filosóficos e religiosos. Morreu aos 89 anos, em uma cela do Colégio da Bahia, cego e fragilizado pelas doenças, adquiridas em sua luta pelos indígenas no interior do Brasil.

Conhecer as ruínas das missões jesuíticas no Paraguai foi um fato para reflexão e emoção. Não se passa impune por elas. São monumentos, ainda que incompletos, onde a beleza todavia habita, e onde está inscrito, indelevelmente, o pensamento jesuíta: “Ad Majorem Dei Gloriam”.

Marina Teixeira da Silva Canedo, escritora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.