Micropoemas de Marcelo Heleno têm tantos sons, todos os tons e podem ser bons

10 novembro 2023 às 13h20

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Nilson Gomes-Carneiro
Especial para o Jornal Opção
Marcelo Heleno tem cinco livros publicados e dezenas de composições musicadas por artistas como o cantor Lucas Faria. Escreve em jornais. Craque nas diversas mídias digitais. Mas sua grande realização continua sendo ter feito a melhor rádio de que se tem notícia, a RBC FM, com Kleber Adorno, PX Silveira, Pio Vargas e Carlos Brandão na Secretaria de Cultura do governo de Henrique Santillo, 1987 a 1990. De volta às manchetes, só que agora do outro lado da tela, lança “Poemas na rede”, pela editora Contato Comunicação, na Biblioteca do Sesi (Rua 19, esquina com Rua 15, Centro de Goiânia), a partir das 20h desta sexta-feira 10/11.
Os poemas, minúsculos, cabem com folga no X, antigo Twitter, uma das redes em que Marcelo Heleno marca presença. As exceções são alguns musicados por ele mesmo, Silvana Gasquez, Rondon de Castro e Maria Eugênia. Outro diferente é o belíssimo “Presente de Natal”, oferecido à mãe, Aparecida (leia na íntegra ao final desta resenha). Um dos textos resume a obra: “Temos tantos sons/ Temos todos tons/ Podemos ser bons”. E alguns são mesmo muito bons. O livro é oferecido a um trio de amigos já mortos, duas glórias da cultura, o escritor Fausto Rodrigues Valle e o músico Otávio Daher, e uma da gestão pública, José Taveira Rocha. Daher e Taveira estiveram na mídia durante alguns anos, chance que o médico Fausto Valle não teve. Infelizmente. Trata-se de um magistral poeta. Marcelo também corre o risco de chegar lá.

As três décadas sem apresentar livros renderam-lhe versos como “Impossível deter o tempo/Não se desfaz na fumaça dos desejos/Não se deixa domar ao fim dos dias Não volta, não dá notícia// Insaciável o tempo”. E esta maravilha sobre o tema: “Te esperei/ Uma vida inteira/ E foi pouco tempo// O cansaço dos anos todos/ Me trouxe rugas// Marcou o meu reboco// São tantos dias/ Renovando a esperança/ Que a vida traiu// E o coração pulsa/ Leve como criança/ Guardado o vulcão”.
Marcelo está com 57 anos e vivia a erupção da menoridade ao ocupar espaços com suas bem-traçadas linhas: ainda era 1984 quando estreou com “Um foco de luz abraça a imensidão da solidão da gente”. O último havia sido “Diabetes”, de 1993. Por que tamanho interregno?
“De início foi opção de vida, me dedicar especialmente aos filhos e à profissão [o jornalismo]. A internet supriu em parte, sim, o lado poeta. Mas senti a necessidade de reunir parte desse trabalho em algum lugar. A dúvida era fazer o livro físico ou digital. Conversando com o Iuri Godinho [dono da Contato Comunicação], ele não só sugeriu como comprou a ideia de fazer o livro impresso”.

Nesse período, foi capaz de se resumir em raros caracteres: “Sou só eu/ Sou eu só/ Só eu sei”. E a vida em menos ainda: “Um dia tranquilo/ Confuso de tudo”. Igualmente cirúrgico na sentença de morte a quem tenta descrever o inefável: “Às vezes/ O amor exige/Silêncio// Por favor”. Falando nele… “O amor não pede licença/ Alcança o íntimo/ Quando menos se pensa/ Nos torna mais ínfimos”. Cita o Pelé da Música Popular Brasileira e o Caetano Veloso do futebol: “Caetano não é tudo/ Mas é um mundo/ Na beleza de ser o que é/ Se faz Pelé”.
A Covid 19 provocou estragos na economia, matou 707 mil e contaminou 38 milhões de brasileiros. Para a literatura, no entanto, se revelou produtiva, como Marcelo na série batizada de “Pandemias”:
2. “Poder abraçar meu filho/ E estancar as dores/ E lembrar dos rios/ E despetalar as flores/ Para que caibam em mim”
4. “Que restem apenas As máscaras necessárias Que o tempo seja senhor E mediador dos novos dias Que a esperança esteja presente Que o ano seja melhor Com amor e prosperidade”
A seguir, leia “Bossa”, poema musicado pelo autor, e o mencionado “Presente de Natal”, oferecido à mãe.
1
Bossa
Não há ninguém que possa
Trancar um coração
No meio de uma bossa
Ou de um samba-canção
Que fale da vida
Da nossa ferida
Na primeira batida de um violão
2
Presente de Natal
Ela me deu um pêssego
Disse que era presente de Natal
E sorriu
Eu acreditei
Acreditei mirando seus olhos fundos
Que atravessaram anos e dores
Guardando mais carinho do que mágoa
Mais suor do que amargor
Mesmo com as rugas presentes
Para lembrar o passado
Todos os dias
Nem tâmaras
Nem peras
Nem damascos
Nem morangos
Muito menos pitangas
Nem outonos, invernos ou verões
(nem mesmo a primavera)
Nem a boca ávida de um novo amor
Nem quimeras
Tinham o sabor
Daquele pêssego
Suado, vivido, sentido, sofrido
Que saiu de mãos calejadas
Pra ganhar a minha eternidade
Ela me deu um pêssego
E foi o melhor presente de Natal
Nilson Gomes-Carneiro é advogado e jornalista. É colaborador do Jornal Opção.