Marina Canedo aproxima Horácio de discussões modernas sobre estética
25 outubro 2025 às 21h00

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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Marina Canedo, uma das mais respeitadas conhecedoras da literatura grega em Goiás, volta a surpreender com um texto de fôlego publicado no Jornal Opção. Sua análise sobre o livro “Arte Poética” (https://tinyurl.com/yau5s4ja), atribuído a Horácio, demonstra não apenas domínio das tradições clássicas, mas também a habilidade de transportar o leitor para o coração de debates que atravessaram séculos.
O artigo, bem escrito e minuciosamente construído, oferece ao público pelo menos dois olhares explícitos sobre a obra. O primeiro deles possibilita uma visão panorâmica do pensamento do autor, trazendo à tona a relação entre poesia, mito e construção do imaginário grego. O segundo, mais ousado, destaca as divergências entre Homero e Platão, ponto alto da reflexão da autora. Para Platão, Homero não deveria ser tomado como guia da verdade, pois sua poesia, ao invés de reproduzir a essência do real, apenas o imita e o deforma. A crítica platônica, portanto, baseia-se na acusação de que a poesia distorce a realidade, afastando os homens do conhecimento verdadeiro. Mas, paradoxalmente, o próprio Platão não esconde sua profunda admiração pelo poeta, a quem reconhece como o grande educador da Grécia e fonte de inspiração para gerações. O embate, como Marina evidencia, é menos de rejeição absoluta e mais de tensão criadora: Platão critica Homero, mas jamais o ignora ou diminui.

Ao apresentar a arte como um sistema no qual as partes só fazem sentido em relação ao todo, Marina aproxima Horácio de discussões modernas sobre estética. Nesse ponto, sua análise evoca uma passagem memorável de Marcel Proust, em “Em Busca do Tempo Perdido”. Proust descreve o gesto do artista que, diante de um leigo confuso, o conduz pela mão, mostrando-lhe como não se deve deter em detalhes isolados de uma obra. Um quadro não é apenas um conjunto de cores, linhas ou sombras; é a fusão dessas partes em uma harmonia que lhes dá sentido. O artista, nesse ensinamento, não mostra apenas “o que ver”, mas ensina “como ver”: como o vermelho de uma flor dialoga com o fundo escuro que a envolve, como uma nota musical ganha beleza por se encadear com outras, como cada palavra de um poema só se ilumina quando lida no fluxo inteiro da estrofe.
Essa lição proustiana dialoga com o ponto levantado por Marina: a arte só revela sua verdade quando se compreende a relação entre fragmento e totalidade. Assim, Horácio, longe de ser apenas um narrador de mitos, se torna, em sua leitura, um arquiteto da experiência estética.
A leitura do artigo de Marina Canedo reafirma sua erudição singular e sua capacidade de transformar textos complexos em reflexões palatáveis para leitores menos familiarizados com o universo da literatura greco-romana. Ao mesmo tempo em que não abre mão do rigor acadêmico, a escritora oferece ao público um mergulho profundo e acessível na tradição literária, tornando Horácio contemporâneo e vivo em nossas mãos.
Salatiel Soares Correia, escritor, crítico literário e ensaísta, é colaborador do Jornal Opção.
