Mandíbula, romance de Mónica Ojeda, trata da erótica feminina entre o perturbador e o encantador

14 maio 2023 às 00h00

COMPARTILHAR
O desconhecido, como eu dizia, é obviamente sempre terrorífico, mas o horrível, o que realmente petrifica nossos órgãos, é o que conhecemos apenas pela metade; o que está perto de nós, e, mesmo assim, não conseguimos entender. Do romance ‘Mandíbula’, de Mónica Ojeda
Candice Marques de Lima
Especial para o Jornal Opção
Perturbador. Esta é, possivelmente, a palavra que mais se aproxima para qualificar o romance “Mandíbula”, da escritora equatoriana Mónica Ojeda, de 34 anos. Ou, melhor dizendo, perturbadora foi a experiência que tive com a leitura do livro.
Em linhas gerais, a história não traz nada de extraordinário. Trata-se das relações entre uma professora — Clara López Valverde — com suas alunas adolescentes. Poderia ser apenas uma história prosaica sobre a vida de garotas adolescentes, de como se relacionam entre si e com suas professoras.
Todavia, Mónica Ojeda escolhe essas relações entre mulheres para tratar de temas mais profundos — e perturbadores — que comparecem para todos. Sobretudo são a violência e o erotismo nas relações femininas os temas marcantes que estão nas páginas de “Mandíbula”.
O título já demonstra que tem a ver com a boca, com a oralidade. Porém, mais do que isso, mandíbula remete a um algo mais do que é possível de ser fazer com a boca e que vai comparecendo nas relações entre miss Clara e suas alunas e entre elas — as adolescentes Fiorella, Ximena, Natalia, Analía, Annelise e Fernanda.

Mandíbula é, pois, uma palavra que vai se deslocando conforme a narrativa se desenvolve e que está onipresente em toda a história. Dá o tom do que virá e que é anunciado na primeira epígrafe, com uma citação do psicanalista francês Jacques Lacan: “Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão. A mãe é isso”.
Relação entre mãe e filha
A relação entre mãe e filha paira sobre as histórias dessas mulheres em seus bons e maus encontros. Em um trecho, possivelmente parafraseando a escritora francesa Simone de Beauvoir (1908-1986), Mónica Ojeda escreve: “As mulheres não fazem a si mesmas, pensou. As mulheres são feitas pelas suas filhas e suas mães”.
Nos capítulos em que Miss Clara é a protagonista, sua relação com sua mãe — perturbadora, incestuosa, sádica e amorosa — é revelada por meio dos seus pensamentos. Clara mimetiza a mãe, já morta, entretanto mais viva do que nunca, em seu comportamento, em seu vestuário — utiliza até suas roupas íntimas — e na escolha profissional, professora de língua e literatura.
A história de “Mandíbula” começa com o sequestro de Fernanda por sua professora Miss Clara. Uma mulher atormentada não somente por sua mãe, mas por ter sido vítima de um sequestro feito por duas alunas da escola anterior em que trabalhava.

Miss Clara relembra com frequência a situação vivida e não é sem sofrimento — e com desejo — que continua a trabalhar como professora. Não mais em uma escola pública, como a anterior, mas no Colégio Bilíngue Delta, High-School-for-Girls, uma escola de elite em Guaiaquil, maior cidade do Equador. A palavra inglesa miss é sempre apresentada quando se reporta à professora, como se fizesse parte do seu nome.
Polifonia de uma narrativa não é linear
No primeiro capítulo acompanhamos Fernanda, que acorda e se vê amarrada a uma mesa com uma arma a poucos centímetros, que ela não alcança. A forma da narrativa de Mónica Ojeda não é linear, o que não torna a leitura difícil. É possível acompanhar a história nesse vai e vem, que fica muito mais interessante e intensa.
Há outra característica que é a polifonia da narrativa. A partir da história de cada personagem, a narrativa tem características específicas. No caso de Miss Clara, por exemplo, há uma repetição de palavras e de experiências que vão ganhando intensidade conforme a história se desenvolve.
Nessa polifonia, os capítulos têm estruturas diferentes. Alguns são bastante curtos e narram apenas diálogos. Outros são densos, e há os capítulos das sessões de análise de Fernanda com seu psicanalista — dr. Aguilar. Nesses só é possível identificar a fala de Fernanda.
A mestria do livro está em como Mónica Ojeda conduz sua leitora e seu leitor a situações inusitadas, eróticas, assustadoras, deixando que façam inferências sobre situações que acontecem com as personagens colocando suas próprias fantasias em ação.
Numa cena absolutamente perturbadora, alguns rapazes pedem para ver nudes de Annelise. A foto que ela mostra é tão assustadora que faz com que um deles se jogue do prédio e o outro passe mal. Contudo, Ojeda não descreve a foto (não nesse momento), pois o objetivo é exatamente que se possa preencher esse enigma com o Unheimlich que nos habita.
Unheimlich foi a palavra alemã, de difícil tradução para a Língua Portuguesa, utilizada por Sigmund Freud para se referir ao que nos é familiar e, ao mesmo tempo, estranho e assustador. No Brasil, uma das traduções, da Editora Perspectiva, traz o título do texto freudiano como “O Perturbador”. É importante destacar que a escrita desse texto foi feita a partir do conto de terror “O Homem da Areia” do escritor alemão E.T.A Hoffmann. Freud considerava Hoffmann um gênio na arte do terror.
Por isso qualifico o livro de Mónica Ojeda como perturbador. Ele traz algo das nossas experiências — perturbadoras, incômodas, estranhas e ao mesmo tempo familiares, que nos habitam e que comparecem em alguns momentos. Momentos evanescentes, que muitas vezes não conseguimos nem perceber ou nomear. Mas que estão ali a perturbar.
Terror nas entrelinhas e sutilezas
“Mandíbula” não pode ser descrito apenas como um livro de terror, pois não é sobre um terror banal, nem sobrenatural, muito menos trash ou apenas psicológico. É um terror que se manifesta nas entrelinhas das experiências com as mulheres do livro. Mónica Ojeda consegue mostrar como a violência e o erotismo podem estar juntos e como no caso das mulheres são experiências diferenciadas.
O livro não trata da violência cotidiana, especialmente aquela experienciada entre os homens ou deles com as mulheres. Não se trata de murros, pontapés, xingamentos… é com outra violência que nos deparamos, que tem características mais além da banalidade da violência costumeira.
Os homens (não todos) podem se utilizar da violência para se impor, para lidar com a concorrência entre si mesmos e com as mulheres, para camuflar suas fragilidades e sobretudo para terem a oportunidade de se tocar.
Em países onde homens ditos heterossexuais não podem ter contato físico além de um aperto de mãos ou um tapinha nas costas, se esmurrar, sair rolando no chão podem ser formas eróticas e sobretudo legitimamente aceitas socialmente. Não é por acaso que muitos meninos passam o recreio a rolarem no chão uns sobre os outros. Ou que machões fortes e tatuados, héteros e cis, adorem lutar artes marciais, como o jiu-jítsu. É uma forma possível de estabelecerem contato e afeto, sem o preconceito habitual sobre sua orientação sexual e gênero.
A violência e a erótica entre mulheres é mais sutil, pois historicamente criamos formas de nos relacionarmos que sejam socialmente aceitas, mas que não deixam de conter o mais além da pulsão. O contato físico entre mulheres não gera tanto estigma como entre os homens, talvez por isso não precisemos rolar no chão brigando quando nos encontramos. É possível que duas amigas se abracem, se toquem, sem que isso seja interpretado como interesse sexual.
A erótica não está somente ligada a uma experiência genital como o coito. Ela está mais aquém e mais além dessa situação prosaica. Como bem define Mónica Ojeda, ou a personagem Annelise: “O amor começa com uma mordida e um deixar-se morder”. Nesse sentido, somente uma mulher pode experienciar as duas coisas em experiências bem primevas — como se alimentar do seio ou amamentar a outrem. Na sequência do texto, Annelise arremata: “No final, o bebê comeria sua mãe, porque assim era o amor. Meu pequeno jacaré, ela diria a seu filhinho. Meu tubarãozinho apaixonado”. Ao que Analía acrescenta ao dizer que tinha lido que certas mães ficariam excitadas ao amamentarem seus filhos.
O que “Mandíbula” apresenta é que o terror cotidiano, aparentemente sutil, encoberto por histórias socialmente aceitas, é o mais assustador. E que as relações entre mulheres, longe de serem pacíficas ou dominadas pela inveja ou pela competição, são mais profundas e envolvem afetos mais primitivos e potentes.
Eu escolheria outra palavra para qualificar o livro: encantador. A escrita de Mónica Ojeda é tão encantadora — daquilo que produz encantamento — que, ao ler seu livro, pensei seriamente por uma meia hora em me tornar escritora de ficção. Logo desisti, confesso, pois prefiro ler mais Mónicas Ojedas, Marianas Enriquez, Marthas Batalhas, Virginies Despentes… escritoras que me colocam para pensar e que trazem um saber para além do conhecimento.
Candice Marques de Lima, professora na Faculdade de Letras da UFG, é pesquisadora de educação inclusiva e psicanálise.