Edmar Monteiro Filho

Nos filmes do diretor grego Yorgos Lanthimos, como “O Lagosta”, “A Morte de um Cervo Sagrado” e no recente “Pobres Criaturas”, o uso inusitado e corajoso da linguagem cinematográfica cria experiências únicas, perturbadoras. Mas esse cinema anticonvencional não se prende a artifícios vazios, destinados simplesmente a provocar estranhamento. Na obra de Lanthimos, forma e conteúdo estão amarrados com precisão e o que se oculta sob a superfície por vezes confusa dos enredos, imagens, diálogos, é um exercício de investigação da alma.

Pensando em experimentação na literatura, impossível não se lembrar de James Joyce ou de Guimarães Rosa. Mas o experimentalismo nesse campo atingiu status de seita religiosa com o grupo OuLiPo (Ouvroir de la Litterature Potencielle), fundando na França dos anos 1960. Trata-se de uma organização de escritores empenhados em construir poemas, contos e romances sob o comando de regras rígidas, tais como: supressão de determinada letra, uso de palíndromos, combinações e permutas matemáticas, uso exclusivo da linguagem oral etc.

Georges Perec: escritor francês | Foto: Reprodução

Fã de Italo Calvino, um dos expoentes do grupo, criei alguns modestos experimentos do tipo em meu livro de contos “Atlas do Impossível”, de 2018 — narrativas dispostas na ordem inversa dos acontecimentos, outras que se encerram no ponto exato em que se iniciam e assim por diante. Mas o que interessa ressaltar é que nenhum grande texto literário se sustenta unicamente sobre meras brincadeiras formais. É necessário estofo, caso contrário desmoronam assim que se conclui a leitura, desfeito o encanto da inovação.

Georges Perec e o OuLiPo

O escritor francês Georges Perec foi daqueles membros do OuLiPo que melhor manipulou os mecanismos e restrições utilizados por essa corrente. Autor de uma série de textos instigantes, não se limitou a criar intrincados enigmas de palavras, mas fez uso de recursos constritores da liberdade literária para discutir seus princípios e, paradoxalmente, expandir seus limites. “A Vida: Modo de Usar” (Companhia das Letras, 680 páginas, tradução de Ivo Barroso), publicado em 1978, é um romance no qual o escritor leva aos limites a possibilidade de construção de um monumental quebra-cabeças literário, ao mesmo tempo em que oferece ao leitor uma profusão de grandes histórias. 

Diferentemente de “As Mil e Uma Noites”, do “Decameron” e outros conjuntos clássicos de narrativas, não há um eixo que orienta o nexo das diferentes peças do jogo, uma situação básica, a partir da qual todos os capítulos teriam início e para a qual retornariam. Aqui, a unidade do conjunto se dá pela justaposição das peças. Um cenário principal, o velho edifício de apartamentos em Paris, serve de substrato, de onde brota o emaranhado de personagens, situações, conflitos, histórias independentes umas das outras, mas que, unidas impõem um sentido maior à aparente dispersão de vidas, acontecimentos, às minuciosas descrições dos ambientes, dos meandros e escadarias do prédio.

Dentro dessa moldura cabem diferentes universos e sua combinação cria novas regiões de interpretação que se agregam e modificam. Dessa forma, o fantástico capítulo 74 (destacado por Waldemar Solha, no “Cultura-e”), mergulho nas profundezas da estrutura física do edifício, funciona como revelação da própria estratégia construtiva do romance, que se desenrola através dos relatos aparentemente desconexos, mas se sustenta na vastidão de significados ocultos.

Vale mencionar o personagem Bartlebooth, que viaja pelo mundo, pintando aquarelas para, em seguida, enviá-las a outro morador do prédio, que as transforma em quebra-cabeças. A reconstrução das telas, por meio da montagem dos puzzles, contém desafios que o personagem — assim como o leitor — deverá decifrar.

O emaranhado de referências às quais recorre Perec, listas, imagens e outros recursos plásticos são pistas — falsas? — que vão sendo dispostas no caminho do leitor, enquanto sobe e desce pelas escadas do edifício, deparando-se com portas cerradas ou abertas de modo revelador, com moradores soturnos ou amistosos, que estão dispostos a descerrar suas vidas sem constrangimento. Mas a estrutura do quebra-cabeça é pensada de tal modo que o leitor jamais passará duas vezes pelo mesmo espaço.

Uma “arqueologia da minúcia”: assim foi qualificada esta que é considerada a obra-prima de Perec. Mas, para compreender a verdadeira dimensão de seu projeto literário, cabe citar seu livro “O Sumiço”, lipograma escrito sem uma única vogal “e”, a mais utilizada no idioma francês. Exercício virtuosístico sim, mas que traz um sentido profundo, uma vez que a vogal ausente aparece duas vezes no nome do escritor, simbolizando sua orfandade, aos seis anos de idade. O pai, morto nos campos de batalha, e a mãe, desaparecida num campo de extermínio nazista, são os dois “e”, essa ausência doída, a despeito da qual o escritor precisa aprender a viver e criar.

Edmar Monteiro Filho é escritor e crítico literário. É colaborador do Jornal Opção. Email: [email protected]