Livro de Gabriela Ariza se inscreve na linhagem dos textos que tratam o imaginário como método
22 novembro 2025 às 21h00

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Sinval Martins de Sousa Filho
Especial para o Jornal Opção
Há livros que retornam à infância não para imitá-la, mas para restaurar aquilo que ela tinha de mais radical: a capacidade de imaginar o impossível como se fosse uma forma de explicação do mundo. “O Lugar dos Meus Sonhos” (Ases da Literatura, 52 páginas, ilustrações de Clarice Naves Campos), de Gabriela Ariza Naves, se inscreve nessa linhagem rara, a dos textos que tratam o imaginário não como fuga, mas como método. A narrativa acompanha uma menina, a Lua (nome que já anuncia o eixo metafórico do percurso), sua coruja falante Aul e o enigmático traje de astronauta Nil, ao longo de uma travessia fantástica que combina aventura juvenil, fabulação cósmica e reflexão filosófica.
O enredo se estrutura como uma ascensão literal e simbólica de uma criança às zonas inabitadas da Lua. A viagem, porém, não busca apenas a maravilha; ela expõe aquilo que a autora identifica como o drama central do crescer: o encontro com o medo, com o desconhecido e com a sedutora promessa de controle absoluto sobre aquilo que sentimos. Nesse sentido, Gabriela Ariza reconfigura os elementos tradicionais da literatura infantojuvenil: o animal conselheiro, o traje encantado, a escalada ao impossível para tratar de temas que pertencem, no fundo, à vida adulta: autonomia, responsabilidade, ética.
O personagem Nil, um traje que desperta, fala, anda e carrega consigo o poder de manipular energias coletivas por meio de um dodecaedro lunar, é a invenção mais instigante do livro. Nele se concentra o ponto de fricção que impede que a obra resvale no mero encantamento: o poliedro que “harmoniza” ambientes, capaz de instaurar e dissipar conflitos, toca num imaginário contemporâneo marcado pela busca incessante de tecnologias de regulação emocional. E Gabriela Ariza, com sensibilidade rara, problematiza essa tentação: a ideia de que existiria um dispositivo capaz de organizar o mundo segundo critérios de conforto.

É nesse ponto que o livro se aproxima de uma leitura político-moral, ainda que discretamente cifrada. O episódio do plebiscito em Aposteriori, as interferências de Nil no cotidiano da cidade, e sobretudo sua pretensão de agir “pelo bem de todos”, revelam o perigo dos mecanismos que suprimem a possibilidade do erro. Contra a fantasia de uma ordem plenamente administrável, Gabriela Ariza faz da criança sua filósofa: é preciso aprender com a fricção, com o incômodo, com aquilo que não se deixa modelar e, sobretudo, preservar o direito à experiência, mesmo quando ela é difícil.
A estrutura do livro acompanha esse amadurecimento. A narrativa, construída em primeira pessoa, adensa-se gradualmente: começa como memória sensorial da infância — sombras, medos, o céu antes de dormir — e avança em direção a um pensamento mais analítico, que nasce da convivência com Nil e Aul. A autora maneja um ritmo delicado, mesclando diálogos leves com explicações que, embora permeadas de conceitos (troposfera, quintessência, energia, sólidos platônicos), não soam didáticas, mas integradas organicamente ao universo da personagem.
As ilustrações de Clarice Naves Campos ampliam esse efeito, reforçando a atmosfera de sonho lúcido que domina o livro. Há, em vários momentos, a sensação de que estamos diante de um híbrido entre diário íntimo e crônica metafísica, em que cada elemento do cotidiano, seja uma pedra, uma serra, um breu de quarto ou um traje infantil, se abre para uma dimensão simbólica.
O desfecho, em que a protagonista precisa desativar Nil para recuperar a soberania sobre sua própria vida, é ao mesmo tempo terno e contundente. A cena, muito bem construída, recusa finais moralizantes, preferindo a ambiguidade: desativar Nil não significa derrotá-lo, mas compreender que o crescimento exige abrir mão de certos atalhos e assumir a vulnerabilidade como parte constitutiva do ser.
Ao final, “O Lugar dos Meus Sonhos” afirma, com elegância e firmeza, que toda viagem fantástica é, no limite, uma pedagogia do real. A aventura lunar ensina que imaginar é uma forma de agir no mundo, e que, para agir, é preciso reconhecer os próprios medos, nomeá-los e aceitá-los. Gabriela Ariza oferece ao leitor jovem (e também ao adulto, que encontra aqui um espelho inesperado) um livro que se lê com prazer e se relembra com inquietação. A fantasia, nesse caso, não adormece a crítica; a desperta.
É um belo aporte para a literatura brasileira contemporânea destinada à infância e à juventude, porque não subestima seu leitor, não simplifica dilemas, não edulcora conflitos. Em vez disso, aposta no que há de mais sério na imaginação: sua capacidade de transformar o modo como olhamos nossa própria vida.
Sinval Martins de Sousa Filho, professor titular da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG), é colaborador do Jornal Opção.
Lançamento do livro
6 de dezembro de 2025 (sábado), às 15h. Entrada franca.
Livraria da Vila — Flamboyant Shopping Center, Goiânia (GO).
