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[Segunda parte da resenha do livro “O Novo Mapa — Energia, Clima e o Conflito entre Nações” (Bookman, 544 páginas), de Daniel Yergin]

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

No mapa energético da Rússia, o petróleo e o gás natural destacam-se como as principais fontes de energia. E a importância delas deve-se ao fato de gerarem fontes de divisas para o país em torno de 30% do Produto Interno Bruto.

Até antes da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a produção de petróleo e gás natural na União Soviética (federação da qual a Rússia fazia parte) oscilava entre a dependência e independência. Entretanto, a partir desse fato histórico, a Rússia — que ressurgiu em 1991, com a extinção da URSS — manteve-se presente no restrito clube dos países exportadores de energia.

Em 1999, Vladimir Putin assumiu o comando do sistema político russo comprometido com um projeto de restabelecer a Rússia ao patamar da grande potência que fora no passado. Embevecido pelo espírito de restabelecer a grandeza do país dos tempos da antiga União Soviética, Putin sempre deixou isso claro quando se sentava à mesa para negociar questões relativas ao interesse nacional. Quanto a isso, reproduzo dos escritos do autor, o modo de ser do presidente russo na delicada questão da Ucrânia: “O que é a Ucrânia? Parte do seu território é na Europa Oriental, mas a maior parte é presente nosso”.

Livro de Daniel Yergin é uma análise precisa do que está acontecendo no mundo | Foto: Jornal Opção

Este ex-agente da KGB chegou ao poder ciente de que o petróleo e o gás natural são produtos estratégicos. Com Putin no poder, a geopolítica da energia russa mudou o olhar para a gigante China, que se tornou um contrapeso no tabuleiro do poder mundial.

A sutileza do autor pode ser expressa na maneira com que percebeu a guinada estratégica de Putin em sua política de afastamento dos Estados Unidos e de aproximação com o gigante chinês. Deixemos que Daniel Yergin apresente seu olhar sobre a questão: “Três décadas após o colapso da União Soviética, emergiu uma nova competição global entre os Estados Unidos e a Rússia. Não é a Guerra Fria da história e do apocalipse nuclear, mas uma guerra fria ainda disputada em conflitos regionais, guerras de informação, ciberespaço, energia e outros assuntos”.

Brilhante o que nos relata o autor. A sua capacidade de enxergar o externo do mapa correlacionado a fatores internos contribuiu decisivamente para que a qualidade desta obra sirva de referência a investigações mais aprofundadas nas questões relativas à geopolítica da energia.

Joe Biden, dos EUA, e Olaf Scholz, da Alemanha: aliados na geopolítica atual | Foto: Reprodução

Sob a incontestável liderança de Vladimir Putin, as questões relativas ao setor energético deixariam de ser inerentes aos tecnocratas para se tornarem um problema de Estado. Essa mudança fez-se necessária pelo fato de o governo russo perceber que energia é poder. Nesse sentido, o então presidente  da União Europeia alertou: “A dependência  excessiva da energia russa enfraquece a Europa”. 

A origem dos conflitos envolvendo o gás natural tem suas raízes regionais e mundiais. Ou seja, a questão é eminentemente geopolítica por envolver disputas entre as nações mais poderosas do mundo. Nesse contexto, evidencia-se a alta dependência que inúmeros países desse continente têm do gás oriundo da Rússia.

O autor atenta para a importância estratégica do gás natural para Rússia e para maioria dos países da União Europeia. Segundo ele, “para a União Europeia, como um todo, o gás natural representa cerca de 25% do consumo de energia. Isso significa que o gás russo, com cerca de 35% do consumo de gás total, fornece 9% da energia da Europa”. A Rússia, por sua vez, depende dos dutos ucranianos para exportar esse energético para Europa.

Conflitos dessa natureza levam-nos a concluir que a guerra da Ucrânia está no centro de uma disputa de poder entre Rússia e a China, de um lado, contra o não menos poderoso Estados Unidos. Eis aí a nova versão da guerra fria anteriormente discutida nestes escritos. Em tal conjuntura, tanto o petróleo como o gás natural transcendem ao conceito de energias tidas como um vetor básico para o desenvolvimento. De agora em diante, esses energéticos serão vistos como instrumentos de poder, de denominação política.

Para a União Europeia, como um todo, o gás natural representa cerca de 25% do consumo de energia. Isso significa que o gás russo, com cerca de 35% do consumo de gás total, fornece 9% da energia da Europa.

Percebe-se essa maneira de considerar a energia como um instrumento da geopolítica, em inúmeras citações, com o envolvimento à construção de dutos para escoar o gás natural para os quatro cantos do continente Europeu. Vejamos alguns exemplos.

Durante um café da manhã entre o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) com o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, o primeiro externou uma posição eminentemente geopolítica. Disse ao presidente dos Estados Unidos: a “Alemanha é totalmente controlada pela Rússia porque recebe de 60 a 70% da sua energia em um novo duto. Me diz se isso é apropriado. Acho que não é”.

Outra passagem que expressa a energia como instrumento da geopolítica foi protagonizada pela chanceler Angela Merkel. Para ela, o duto não era “só um projeto econômico. Obviamente, fatores políticos devem ser levados em conta”.

Daniel Yergin: doutor por Cambridge e Prêmio Pulitzer | Foto: Reprodução

A relação da Rússia com a China

É oportuno avaliarmos um último, e não menos importante, aspecto amplamente comentado nesses escritos relacionados ao uso do gás natural como instrumento geopolítico. Trata-se da guinada da Rússia para o Oriente. Em situações como essa é oportuno lembrar daquele velho provérbio de que “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”.  Esse movimento de Putin revela ao mundo a estreita ligação que existe entre energia e estratégia.

Falta-nos refletir, mais profundamente, no que concerne essa aliança estratégica da Rússia com a China. Elaborei alguns fatos elencados pelo autor que justificam esse movimento estratégico de aproximação.

Primeiro: o país precisava adaptar-se a essa mutação do poder global dos Estados Unidos para região Ásia-Pacífico.

Produção de gás na Rússia: a Europa se tornou dependente do país de Putin | Foto: Nikolay Doychinov/AFP

Segundo: juntos, esses países fortalecem-se para combater a unilateralidade dos Estados Unidos sobre um mundo que anseia por um poder disperso e multilateral. Cabe aqui um exemplo: veja-se o caso da decisão tomada pelo governo americano de invadir o Iraque, mesmo tendo a desaprovação da Organização das Nações Unidas.

Terceira: a guinada em termos energéticos possibilitou a construção do oleoduto Sibéria-Pacífico.

Quarta: a elevação das compras de petróleo russo pela China (de 5% para 30%) possibilitou que a Rússia superasse a Arábia Saudita como a maior fornecedora do produto para aquele país.

Não resta dúvida de que a energia avaliada no âmbito da geopolítica é um fator que mexe nas estruturas de poder. Nesse contexto, o país autossuficiente de petróleo e gás natural terá enormes vantagens estratégicas sobre aqueles outros países dependentes desses energéticos para atender às exigências de seu desenvolvimento. Nesse contexto, o olhar da Rússia para China, certamente, mudará demasiadamente as zonas de influência das duas poderosas nações.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em Energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos temas Energia, Política e Desenvolvimento Regional. É colaborador do Jornal Opção.