Livro de Caio Alcântara demonstra que o processo se tornou assujeitado pelos órgãos julgadores

06 setembro 2025 às 21h00

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Lenio Luiz Streck

É com enorme prazer que apresento uma obra como a de Caio Alcântara Pires Martins. Uma obra como essa nos relembra do papel da doutrina — que ainda doutrina. Venho, de há muito, (re)afirmando a necessidade de a doutrina voltar a doutrinar. E quando vemos alguém fazer exatamente isso, já desde a dissertação de mestrado, a sensação não poderia ser mais animadora.
O que Martins realiza em sua obra “Processo Sem Sujeito” é a verdadeira crítica do direito, especialmente do direito processual, onde este fenômeno negativo da “ausência” de uma dogmática crítica se mostra cada vez mais presente. Temos um caso curioso em terrae brasilis, onde o mesmo diploma processual é elevado pela coerência e integridade, mas, por conta de um “sistema” de precedentes, acaba por tornar a má aplicação desse princípio a razão de sua própria falência.
Explico. Por questão de honestidade intelectual, fui um dos articuladores da inclusão do artigo 926 no CPC, quando este ainda era um projeto na Congresso. Mas ressalto que o intuito sempre foi a integridade, esta é a razão dos tribunais terem de respeitar os precedentes, pois eles lidam com o passado. Essa coerência para com o precedente é o que chamamos de integridade, que defende Dworkin, entre outros autores, além deste que vos fala nesta apresentação.

O que a obra apresentada faz muito bem é observar que as práticas doutrinárias e jurisprudenciais estão fazendo é desvirtuar a aplicação dos artigos 926 e 927 por conta de uma noção errônea do conceito de precedente. O que se busca criar no Brasil é uma jurisprudencialização do direito, em que precedentes (que lidam com o passado) se tornam teses (e temas) que visam a uma aplicação futura — aplicação essa que vincula tribunais e juízes de direito de instâncias inferiores, os quais ficam proibidos de interpretar. Juízes e tribunais boa dos precedents – esse é o “lema”.
Desse modo, há a necessidade de fazermos um distinguinshing (com o perdão do trocadilho) entre práticas judiciais perniciosas à coerência e integridade e uma crítica mais geral aos fundamentos pelo qual a dogmática jurídica e os tribunais adota(ra)m esse conceito equivocado de precedentes.
Há no Brasil tribunais que, hoje, calcados em uma crítica aproximada e, por vezes, fruto de vulgatas, negam-se a aplicar os precedentes vinculantes aos processos de sua competência. Isso cria uma disfuncionalidade, isto é, a chegada de milhares de processos nos tribunais superiores, tudo porquê não se aplicou a coerência e integridade ao caso concreto. Desrespeito aos artigos 926 e 927. Esse fenômeno é notório nos casos criminais.

Por outro lado, há uma necessidade — que é o intuito dessa obra — de se fazer uma crítica de segundo nível, uma crítica epistemológica do que significa o processo a partir de uma aplicação adequada do conceito de precedentes e, a partir dessa crítica, revolver o chão linguístico do fenômeno que se assenta tal tradição, demonstrando que o sistema de precedentes, da forma como é (mal) compreendido em Pindorama, acaba por “desassujeitar” o processo, enquanto “assujeita” o todo poderoso tribunal que verticiza a aplicação do direito.
As referências da obra estão todas aqui. De Castanheira Neves, que expôs a problemática dos assentos, até este humilde apresentador, que denuncia a má-compreensão do tema dos precedentes no Brasil, tudo que já foi realizado de crítica à jurisprudencialização do direito via verticalização judicial está devidamente inserido, de forma que a presente obra, se soma a uma tradição de juristas que contribuem para com a processualística sem que se tornem caudatários do decisionismo judicial.
Heidegger em sua filosofia hermenêutica dá outro nome para o “sujeito”. Para ele, uma denominação mais adequada seria “ser-no-mundo”. O que Martins faz sem sua obra, ao problematizar todo a questão da abstrativização do direito e dos chamados “provimentos vinculantes”, é demonstrar como o processo, dentro do modelo jurisprudencializado atual, está cada vez menos um processo intersubjetivo de seres-no-mundo, para se tornar um processo assujeitado pelos órgãos julgadores. Esse é o estado da arte que o presente trabalho busca denunciar e o qual convido a todos para a leitura.
Lenio Luiz Streck é doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com pós-doutorado pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL). Professor titular dos Programas de Pós-Graduação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e da Universidade Estácio de Sá (Unesa). Advogado, parecerista e ex-procurador de justiça do MP-RS.
Nota da redação do Jornal Opção
O texto acima é a apresentação do livro de Caio Alcântara Pires Martins. O título, “Livro de Caio Alcântara demonstra que o processo se tornou assujeitado pelos órgãos julgadores”, é da lavra do Jornal Opção, mas baseado nas ideias do jurista Lenio Streck.
Serviço/Lançamento na Livraria Leitura
O livro “Processo Sem Sujeito”, de Caio Alcântara Pires Martins, será lançado no dia 2 de outubro, quinta-feira, às 18 horas, na Livraria Leitura, no Goiânia Shopping.