Levitsky e Ziblatt: democracia imperfeita — o paradoxo americano diante de constituições escandinavas
20 setembro 2025 às 21h00

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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
A democracia norte-americana é frequentemente apresentada como exemplo para o mundo, mas, quando examinada de perto, revela fragilidades institucionais que desafiam sua reputação. Em “Como as Democracias Morrem”, os professores de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt expõem mecanismos herdados do século XVIII que ainda hoje distorcem a soberania popular. Entre eles estão o colégio eleitoral, que já levou presidentes ao poder sem maioria de votos; o gerrymandering, que manipula mapas eleitorais para favorecer partidos; e o filibuster, que permite a uma minoria bloquear decisões apoiadas pela maioria no Senado. Soma-se a isso a vitaliciedade dos juízes da Suprema Corte, que transforma cada nomeação em disputa política capaz de moldar gerações.
Esses mecanismos ajudam a entender por que os Estados Unidos, apesar de sua força econômica e militar, convivem com paradoxos democráticos que corroem a confiança do eleitor. O contraste com países como Noruega, Suíça e Dinamarca, que modernizaram suas constituições e construíram instituições mais representativas, é inevitável. A lição é clara: democracias sólidas não se sustentam apenas em tradição, mas na capacidade de se adaptar às demandas do presente.
Colégio Eleitoral: quando a maioria perde
Nenhum outro mecanismo ilustra tão bem essa contradição quanto o colégio eleitoral. Criado em 1787, como parte de um pacto entre estados grandes e pequenos, o sistema buscava garantir equilíbrio federativo. Na prática, tornou-se um entrave à democracia direta. O eleitor americano não vota diretamente para presidente, mas para delegados estaduais que compõem o colégio. E esses delegados podem dar a vitória a quem não conquistou a maioria absoluta dos votos.

A história mostra o peso dessa distorção. Em 1876, Rutherford Hayes venceu Samuel Tilden mesmo tendo perdido no voto popular. Em 1888, Benjamin Harrison superou Grover Cleveland pelo mesmo mecanismo. Mais recentemente, George W. Bush em 2000 e Donald Trump em 2016 chegaram à Casa Branca contrariando a vontade da maioria dos eleitores. Em todas essas ocasiões, o país mais poderoso do mundo assistiu ao triunfo do casuísmo sobre a soberania popular.
Essa desigualdade fica ainda mais evidente ao comparar o peso dos votos. A Califórnia, com cerca de 39 milhões de habitantes, tem 55 delegados. Wyoming, com pouco mais de 580 mil habitantes, tem 3. Isso significa que o voto de um morador de Wyoming vale quase quatro vezes mais que o de um californiano. Essa desproporção mina a ideia de igualdade política e alimenta a descrença do eleitorado.
Gerrymandering: a cartografia a serviço da política
Outro mecanismo analisado por Levitsky e Ziblatt é o gerrymandering, a manipulação de distritos eleitorais para favorecer partidos. O termo surgiu em 1812, quando o governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, aprovou um mapa em que um distrito parecia uma salamandra. Da fusão entre “Gerry” e “salamander” nasceu o conceito.
A cada censo, os distritos precisam ser atualizados. O problema é que partidos dominantes usam o processo para manipular fronteiras, concentrando eleitores adversários em poucas áreas e distribuindo os seus em regiões de vantagem. Assim, cadeiras no Congresso são conquistadas mais pela habilidade dos cartógrafos partidários do que pela vontade dos eleitores.
O gerrymandering aprofunda a polarização política. Distritos seguros produzem candidatos radicais, pouco dispostos a negociar. O Congresso se torna um campo de guerra, incapaz de gerar consensos. Além disso, a prática reforça desigualdades raciais: comunidades negras ou latinas são frequentemente fragmentadas em distritos diferentes para reduzir sua representatividade. Em vez de corrigir desigualdades, o sistema as perpetua.

Filibuster: o bloqueio da minoria
Se o colégio eleitoral distorce a presidência e o gerrymandering compromete a Câmara, o filibuster paralisa o Senado. Esse mecanismo permite que uma minoria de senadores prolongue indefinidamente os debates e impeça que uma proposta chegue à votação, salvo se houver 60 votos favoráveis para encerrar a obstrução.
Na prática, isso significa que 41 senadores — muitas vezes representando estados de baixa população — podem bloquear decisões apoiadas pela maioria. Ao longo da história, o filibuster foi usado como arma contra avanços sociais. Nos anos 1950 e 1960, foi acionado repetidas vezes para barrar legislações de direitos civis. Em 1957, o senador Strom Thurmond chegou a falar por 24 horas seguidas para impedir a votação da Lei dos Direitos Civis.
Hoje, o filibuster não exige nem longos discursos: basta anunciar a intenção de obstruir para que seja necessário alcançar 60 votos. Entre 1917 e 1970, ele foi usado menos de 60 vezes. Entre 2010 e 2020, ultrapassou 500 usos. Esse crescimento transformou o Senado em uma instituição disfuncional, onde a minoria governa pelo bloqueio.
Suprema Corte vitalícia: tribunal fora do tempo
A Suprema Corte completa o quadro de distorções. A vitaliciedade de seus juízes, prevista em 1787, faz com que cada nomeação seja uma batalha política intensa. Um presidente pode governar por apenas quatro anos, mas suas indicações moldam a jurisprudência por três ou quatro décadas.
Donald Trump, por exemplo, conseguiu indicar três juízes em um único mandato, consolidando uma maioria conservadora. Essa configuração já produziu efeitos concretos, como a reversão da decisão Roe v. Wade (1973), que por quase 50 anos garantiu o direito constitucional ao aborto. O caso mostra como a vitaliciedade judicial desconecta o tribunal das transformações sociais, tornando-o palco de disputas partidárias prolongadas.
Contraste escandinavo: constituições vivas e adaptáveis
Enquanto os Estados Unidos mantêm instituições rígidas, países como Noruega, Suíça e Dinamarca seguiram caminho oposto. Nessas nações, as constituições foram modernizadas para corrigir distorções e ampliar a participação cidadã.
Na Noruega, desde a Constituição de 1814, sucessivas reformas fortaleceram o parlamentarismo e tornaram o governo mais transparente. A Suíça inovou com a democracia direta: plebiscitos e referendos obrigam os governantes a consultar a sociedade em decisões cruciais, aproximando povo e instituições. Já a Dinamarca consolidou um equilíbrio entre monarquia constitucional e parlamento, criando um sistema que reflete com mais fidelidade a vontade popular.
Esses países, embora menores e sem a projeção global dos EUA, alcançaram sistemas institucionais mais estáveis e representativos. A lição é clara: solidez democrática não se mede pelo poder militar ou econômico, mas pela capacidade de adaptação das instituições.
O que os EUA precisam mudar
Levitsky e Ziblatt sugerem reformas que poderiam aproximar os Estados Unidos de modelos mais modernos. Entre elas estão a adoção do voto popular direto para presidente, o fim ou limitação do filibuster, o redesenho imparcial dos distritos eleitorais, a imposição de mandatos temporários para juízes da Suprema Corte e a realização de revisões constitucionais periódicas.
São medidas que exigiriam um debate profundo, mas que esbarram em dois obstáculos centrais: o apego quase religioso à Constituição de 1787 e a polarização política que divide o país. Para os autores, enquanto esses fatores prevalecerem, a democracia americana continuará refém de suas próprias contradições.
Uma lição incômoda
O paradoxo é evidente: os Estados Unidos exportam o discurso da democracia, mas convivem com práticas que enfraquecem sua legitimidade interna. O colégio eleitoral, o gerrymandering, o filibuster e a vitaliciedade na Suprema Corte revelam um sistema engessado, em que a soberania popular é constantemente filtrada por regras antiquadas.
O contraste com países escandinavos demonstra que o segredo da solidez democrática não está em ser potência global, mas em saber adaptar instituições às demandas da sociedade. Democracias que não se renovam tornam-se prisioneiras de suas próprias falhas. É essa lição incômoda que Levitsky e Ziblatt oferecem ao mundo: nenhuma democracia é eterna. Para sobreviver, precisa ser revista, corrigida e defendida a cada geração.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, administrador de empresas, mestre em energia pela Unicamp e autor de nove livros sobre energia, política e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.
