Lete — O Livro do Esquecimento, de Harald Weinrich: lembrar e esquecer são cruciais para o homem e a história

09 agosto 2025 às 21h00

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Marina Teixeira da Silva Canedo
Especial para o Jornal Opção
“O esquecimento é uma das formas de memória, seu vago sótão é o secreto verso da moeda.” Jorge Luis Borges
Uma das grandes preocupações da medicina tem sido o combate às doenças que afetam o cérebro e a memória. Pesquisas são direcionadas à descoberta das causas e dos tratamentos relacionados à demência, como o Alzheimer e outras, que levam à perda de memória.
Contudo, a importância de tão preocupante assunto extrapolou o campo das pesquisas científicas e adentrou a seara da literatura. Na verdade, antes da ciência se direcionar ao assunto o esquecimento já era mencionado nos mais antigos escritos, a começar pela “Odisseia” de Homero.
Em 2001 o escritor e linguista alemão Harald Weinrich (1927-2022) lançou uma obra admirável, “Lete —Arte e Crítica do Esquecimento” (Civilização Brasileira, 346 páginas, tradução de Lya Luft), na qual se propõe a elaborar um completo tratado sobre a história cultural do esquecimento por meio da literatura e da filosofia.
Com perfeccionismo e profundidade, Harald Weinrich inicia o estudo pela linguística, indo diretamente ao latim e ao grego. Lete é o rio do esquecimento na mitologia grega e, tal como o Aqueronte e o Estige, tem papel importante para as almas: aquela que bebesse de suas águas esqueceria sua vida anterior e se prepararia para reencarnar. Portanto, a lembrança se “liquidava”.
Poetas e escritores têm, desde tempos imemoriais, se utilizado do rio como metáfora para significar a vida, a sabedoria, o conhecimento e a memória e, no caso dos gregos, a falta de memória ou esquecimento.
A deusa Lete e sua contrapartida, a deusa Mnemosyne, formam o duo esquecimento-memória. Os verbos olvidar (espanhol e português), oublier (francês), têm suas raízes no latino oblivisci, oblívio.

No entanto, a era tecnológica nos fornece também um verbo novo, que é deletar, oriundo do inglês que, por sua vez, vem do latim “delere” (que, apesar de terem o mesmo sentido, nada tem a ver com “lete”).
Apertando uma tecla do computador eliminamos aquilo que não nos convém. Sua função é não apenas esquecer, mas principalmente eliminar. Muitas vezes seu uso faz o usuário se sentir poderoso e onipotente ao apertá-la nas redes sociais, eliminando pessoas que já não lhe interessam e assuntos com os quais não concorda. Mas a deusa Mnemosyne deixou seus rastros nos substantivos memória, anamnese, mnemônico (adjetivo) e seus inúmeros derivados.
Lembrar e esquecer formam as duas faces de uma mesma moeda, ambas importantes para o homem e a história. Com a memória erige-se a história, mas que benefícios traz o esquecimento? Harald Weinrich encarregou-se de dar as respostas e o resultado foi surpreendente.
Homero, Cervantes, Rousseau e Kant
Sendo um estudo minucioso e profundo, todos os aspectos do empolgante assunto foram abordados. Escritos gregos e romanos foram consultados e, por ordem cronológica, seguiu-se uma lista de livros e autores até os dias de hoje, onde as menções ao esquecimento foram encontradas e interpretadas pelo erudito professor alemão.

Homero, na “Odisseia”, relata três momentos em que deram a Ulisses e a seus companheiros uma beberagem encantada que os fez esquecer seu passado e a necessidade de voltar para casa.
Grandes debates se desenrolaram a respeito da importância da memória e do engenho (ingenium). O valor da memorização foi sendo questionado em favor da razão e do raciocínio.
Miguel de Cervantes (1547-1616), baseando-se nos ensinamentos do médico naturalista Juan Huarte (1529-1591), criou os personagens Dom Quixote e Sancho Pança, delineando-os pela teoria dos sucos corporais e da frieza e umidade ou calor e secura do cérebro.
Dom Quixote tinha cérebro seco, era magro, alto, triste, desmemoriado, porém engenhoso. Sancho Pança tinha cérebro úmido, era gordo, baixo, excelente memória, mas pouco engenho. E assim, “com eles cavalgam a memória sobre o burro e o esquecimento a cavalo”.
Em Dom Quixote a memória estava ligada à fantasia. A coerência que Cervantes estabeleceu entre a teoria e a consecução e elaboração de tão distinguidos personagens foi um dos fatores do absoluto sucesso de “Dom Quixote”.

No Século das Luzes a aprendizagem unicamente por intermédio da memorização foi sendo condenada e excluída.
Segundo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) a pedagogia da memória através da mnemotécnica antiga, é um funesto desvio da educação. Ele escreve “Confissões” e “Emílio” nos quais apresenta suas teorias da educação no convívio com a natureza abolindo toda a metodologia antiga.
A memória mecânica é também condenada por Immanuel Kant (1724-1804), que tinha “memória fraca” (tal como Montaigne) e apostou no ingenium como sendo a verdadeira fonte do conhecimento. No final da vida ele sofreu de Alzheimer.
Borges e os simulacros da memória
Com a difusão da imprensa desde o final do século XV os livros passaram a ser uma continuidade da memória natural e são chamados por Jorge Luis Borges de “simulacros da memória”. Mas há aqueles que imputam aos livros (Platão e outros) a causa da decadência da memória humana por se acomodar a eles, ao passo que a transmissão do conhecimento através da oralidade estimulava a memória, mas é uma tese absolutamente questionável.
As vantagens do esquecimento se mostram principalmente nos relacionamentos amorosos. O prolongamento da dor de um término amoroso só é resolvido através do esquecimento.
E mais: um novo amor liquida o sofrimento anterior, e Giacomo Casanova (1725-1798) sabia muito bem disso. Sua vida foi uma sucessão de casos amorosos nos quais procurava sempre as alegrias dos sentidos. Sua vida e experiências amorosas foram registradas em sua autobiografia publicada depois de sua morte sob o título de “Histoire de ma Vie”, escrita em 1797, aos 72 anos.

Mas um aviso é feito pela fé cristã: — que os homens nunca se esqueçam de Deus, pois Ele não se esquece de seus filhos. Essa ordem é parte da liturgia da Ceia do Senhor.
Jesus, ao instituir a Ceia, disse: “Fazei isto em memória de mim”, para que Ele e seu sacrifício sejam sempre lembrados.
O esquecimento deve ser abolido da relação entre os homens e Deus. Porém, Deus esquece os pecados de quem lhe suplica o perdão. Agostinho de Hipona ressalta que, tal como a Trindade divina, a alma humana também é trinitária tendo três forças: Memória, Razão e Vontade.
Em sua grandiosa e enciclopédica obra “Em Busca do Tempo Perdido” Marcel Proust (1871-1922) também percorre os caminhos da memória e discorre sobre a memória involuntária, aquela que eclode de um olhar, de determinados sons, do cheiro e do tato. Tempo-memória-esquecimento caminham juntos em sua monumental obra como também nos poemas de Stéphane Mallarmé (1842-1898) e Paul Valéry (1871-1945), seus contemporâneos e compatriotas.

Autoritarismo e o descanso mental
Outro tipo de “esquecimento” é aquele imposto por regimes autoritários. Exemplo disso aconteceu na Revolução Francesa, quando tentaram aniquilar os termos referentes à antiga ordem, mudando até os nomes dos meses.
O esquecimento, não sendo derivado de doenças neurológicas, tem efeito benéfico sobre a saúde mental e emocional. É importante que a sobrecarga de informações desapareça da memória, dando ao indivíduo o necessário descanso mental.
Com o passar do tempo o acúmulo de informações e seus registros têm aumentado exponencialmente. Isto se dá também no campo da pesquisa científica. O oblivionismo da ciência constitui-se na rejeição sensata de informações e tem sido praticado por imposições práticas e necessárias.
O memorialismo, que por tantos séculos predominou na busca por conhecimento, tem sido substituído pela pesquisa, pela busca do novo, a ponto de não mais procurarem a verdade científica atrás de si mas à sua frente. Mas as ciências humanas e sociais não podem operar sem a experiência histórica. Isto nos leva novamente à Grécia Antiga, para o altar das divindades Mnemosyne e Lete, cujos conceitos levaram escritores e cientistas a desenvolverem estudos sobre memória e esquecimento.
Marina Teixeira da Silva Canedo, poeta, cronista e crítica literária, é integrante do Instituto Cultural Bernardo Élis e colaboradora do Jornal Opção.