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A cola que mantêm o conto e a crônica unidas é a cola do humor — elemento sempre presente na literatura em prosa de Lêda Selma

Ademir Luiz

A literatura da escritora baiana-goiana Lêda Selma é múltipla e multifacetada. Multiplica porque ela atua em diferentes vertentes da produção escrita: poesia, conto, crônica, ensaio entre outros. Multifacetada porque jamais estamos diante de algo simples, banal ou tradicional. Sua poesia é movida pela emoção, embora exiba apuro técnico evidente, como se fosse filha legítima e cartorial de Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto. Seus ensaios são pontuados pela pesquisa, destilando informações surpreendentes a cada página, mas descritas com o máximo de esmero estético, tornando-a uma estilista do ensaio, sem medo de polêmica, como é Camille Paglia e foi Susan Sontag.

E quanto ao conto e a crônica? Aqui o multifacetado torna-se irmanado, amalgamado, integrado, fundido. As fronteiras se tornam balcânicas, embora tenha uma ONU com a sigla LS (“Legião Semântica” ou “Lêda Selma” mesmo) controlando-as nos bastidores. E qual o resultado? O conto é cronístico e a crônica é contística. Em muitos casos é tecnicamente difícil definir o gênero literário de seus textos. Há contos que parecem crônicas, crônicas que parecem contos, contos que usam elementos da crônica sem deixar de ser contos, crônicas que usam elementos do conto sem deixar de ser crônicas, contos que ludibriam o leitor deliberadamente para fazê-lo pensar que está lendo uma crônica, crônicas que… bem, você entendeu. O fato é que essa característica híbrida pode ser percebida claramente em clássicos da narrativa curta como “O velório do velho Hilário”, “Assombração” e “Estresse Divino”.

E como podemos chamar esse fenômeno estético tão específico? A própria escritora Lêda Selma deu a chave interpretativa: ela afirma que escreve “cronto”. Sim, isso mesmo, essa crônica com sabor de conto, ou vice-versa, pode ser chamada de “cronto”.

Lêda Selma: escritora | Foto: Facebook

Optei por apresentar aqui dois exemplos de “cronto”. “Que falta o inglês me faz…!” e “Quem dá aos pobres”, publicados na coletânea “Até Deus Dúvida”, de 2002, e reproduzidos na internet e em outros livros como “Sortidos e Requentados”, de 2009. Notem que a cola que mantêm o conto e a crônica unidas é a cola do humor. Elemento sempre presente na literatura em prosa de Lêda Selma. Se sua poesia é o primeiro livro da poética de Aristóteles, sua prosa é o segundo livro, que trata de comédia. Aquele livro perdido, mas sempre reencontrado nas margens da tradição.

“Que falta o inglês me faz…!” começa com o mais legítimo pedigree cronístico. Abre com observações, em tom de humor, sobre a importância social e cultural do conhecimento de outros idiomas, particularmente do “esperanto que deu certo”, o inglês. Segue com a descrição de uma situação particular: uma viagem de sonhos com um grupo de amigas para a Grande Maçã, para Nova York. Temos até aqui tudo o que se espera de uma crônica tradicional. O comentário social, o tom leve, a observação a partir do cotidiano.

De repente, a cadeia de DNA de crônica começa a se romper. As personagens da crônica, até então figuras emprestadas da realidade, se não de fato pelo menos de direito, se transformam em personagens literárias de comédia de costumes. Desembarcam no aeroporto americano e, um tanto desnorteadas pelo relógio biológico desregulado, procuram um restaurante para almoçarem. A tarefa aparentemente simples esbarra na barreira da língua.

Eis que surge um solicito yankee para ajudar, iniciando um diálogo que poderia figurar nos antigos esquetes dos mestres Chico Anysio e Jô Soares.

“— Good morning, what do you want?

— What nós queremos? Acho que é isso — traduz a mais sabida, bem baixinho.

— Good morning. Nos want almoçar — responde a outra, pausadamente.

— What? — espanta-se o homem.

— Do you speak português? — perguntam em dueto.

— I dont’t speak portuguese — em tom de lamento, o americano.

— Help! Do you habla espanhol? — uma delas arrisca, ainda mais confusa.

— No, I don’t speak espanhol.

— Então danou-se — concluem sem, entretanto, desistirem.

— Al-mo-çar… yes? — insiste uma dela, já sem tanto estilo.”

Segue o diálogo que se transforma em comunicação por mímica. Até que, finalmente, o paciente americano acredita que entendeu o que o grupo de damas brasileiras querem. Conduz o grupo até a porte de um… WC/toilette, em português dicionariado “banheiro”.

O escritor argentino Julio Cortázar comparava o conto com uma espécie de esfera. Assim como a esfera, o conto não pode ter sobras, falhas, arestas, precisa ser preciso. O conto deve estar sempre em um crescente, não pode realizar variações de ritmo, como uma novela ou um romance. O conto é direto e deve conduzir para um final que surpreenda, que produza impacto. Para Cortázar o final do conto deve ser como o final de uma anedota. “Que falta o inglês me faz…!”, obedece a essa premissa de forma objetiva. É um conto, crônica, anedota na acepção das palavras.

Não é exatamente o mesmo caso de “Quem dá aos pobres”. O elemento humorístico está presente, mas de forma diversa. Não se baseia no chiste ou na surpresa final. Temos uma situação absurda dobrada e desdobrada ao limite. O final é nonsense puro, algo entre o Woody Allen dos livros e primeiros filmes e o grupo de humoristas ingleses Monty Python.

O “cronto” começa com a tradicional forma de crônica. Comenta sobre os conhecidos problemas gerados pelo ato de se emprestar dinheiro para amigos, na boa é velha tradição de “vai perder o dinheiro e vai perder o amigo”. Em seguida, narrando um episódio exemplar sobre o tema, lentamente surge o conto, com personagens e tudo, sagazmente batizados de Generosa e Vivalda.

A dinâmica e a de uma partida de tênis, com as personagens trocando raquetadas rápidas.

Generosa empresta dinheiro para colega de trabalho Vivalda.

Vivalda passa a evitar generosa.

Generosa, ingenuamente, tenta se reaproximar.

Vivalda acusa Gerenosa de estar acossando-a, de ser uma agiota sem coração.

Generosa, ainda mais ingenuamente, tentando pacificar a situação, libera Vivalda da dívida.

Vivalda, ofendida, afirma que quem deve é Generosa, por ela ter lhe dado a chance de demonstrar solidariedade.

Generosa não entende nada. Menos ainda quando Vivalda sai de férias deixando um bilhete, chamando Generosa de inimiga, no qual afirma que poderia processá-la por “calúnia e difamação, lesões morais e danos emocionais”. Só não faria isso por ser “exatamente como o seu nome: generosa”. Termina a carta afirmando que se “quem dá aos pobres, empresta a Deus”, a ex-amiga deveria cobrar de Deus pessoalmente.

Generosa, se fosse menos generoso, poderia fazer essa cobrança migrando para o citado conto “Estresse Divino”. Mas essa é outra história. Aliás, esse é outro “cronto”.

Ademir Luiz é escritor e crítico.