“Laranja Mecânica” é aguda reflexão sobre a eficácia dos mecanismos coercitivos do Estado

30 abril 2023 às 00h00

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Edmar Monteiro Filho
Muitos episódios especiais em minha vida estão ligados ao cinema. Recordo-me de uma tarde de domingo, subindo a Rua Treze de Maio, ao lado de meu bom camarada Vitor Aleixo, buscando palavras para traduzir aquilo que sentíamos após assistir a “Além da Linha Vermelha”, de Terrence Malick.
Muitos anos antes, “Reds”, filme dirigido e interpretado por Warren Beatty, dialogou de forma tão dura com meus idealismos que imagino ter amadurecido o equivalente a uma década naquela única noite em que assisti ao filme, num velho cinema em Uberlândia. Inumeráveis filmes marcaram-me especialmente. Cito “Os Inocentes”, de Jack Clayton, com Deborah Kerr, que ensinou-me o sentido do suspense, e “El Cid”, estrelado por Charlton Heston e dirigido por Anthony Mann, que ajudou a construir a figura do herói em minha imaginação.

Antes mesmo de compreender que se tratavam de trabalhos do mesmo diretor, Stanley Kubrick, o épico “Spartacus”, o drama de guerra “Glória Feita de Sangue” e o espetacular “2001, Uma Odisseia no Espaço” ficaram assinalados em minha lembrança como paradigmas de seus gêneros.
“”2001…” não só me abriu os olhos para o universo da ficção científica, como ensinou-me que um grande filme não precisa necessariamente contar uma história como quem leva o espectador pela mão. Dessa forma, franqueou-me acesso ao cinema de Bergman, Herzog, Tarkovski, Resnais, Antonioni e tantos outros cineastas que exploraram os recursos do cinema para colocar a alma humana ao avesso, sem necessariamente fazerem uso de um enredo convencional.

Laranja Mecânica: de Burgess a Kubrick
Outro filme de Kubrick iria me impressionar profundamente: “Laranja Mecânica”. Mas, vivendo sob a tutela dos militares, nós, brasileiros, só pudemos assistir a mais essa obra prima sete anos depois de sua estreia nos EUA, ainda assim com as ridículas bolinhas pretas mandadas colocar sobre os órgãos genitais dos atores nas cenas de nudez pelos geniais censores da ditadura, enquanto a violência extrema do filme era exibida sem retoques.
“Laranja Mecânica” — título que remete a uma gíria usada em certas regiões londrinas para significar “insanidade” — baseou-se no livro homônimo do escritor britânico Anthony Burgess, escrito em 1962. O autor chegou a afirmar que o filme superava seu texto em qualidade. Pessoalmente, discordo. O livro é forte, atual, e a adaptação de Kubrick lhe faz justiça. São duas obras excepcionais.

O enredo de “Laranja Mecânica” transcorre numa Inglaterra de tempo indefinido, marcado pela violência e autoritarismo. Aborda o cotidiano de uma gangue de delinquentes, liderados pelo perverso Alex, que, estimulados pelo uso de drogas potentes, ingeridas nos bares da cidade, vagam à noite atacando mendigos e invadindo casas para agredir, roubar e violentar seus moradores.
Alex é egresso de uma instituição correcional e vive sob constante suspeita e vigilância das autoridades, mas oculta sua crueldade por sob um verniz de polidez, gentileza e alta sensibilidade musical. Após novos episódios de violência, Alex é encarcerado e acaba servindo como cobaia para um tratamento experimental, destinado a coibir seus impulsos violentos. Após submeter-se a torturantes procedimentos, é considerado reabilitado, sendo restituído à liberdade.

Distantes que estamos de encontrar soluções efetivas contra o problema da violência em nossas sociedades, “Laranja Mecânica” permanece como aguda reflexão sobre a eficácia dos mecanismos coercitivos do Estado. Endurecimento da penalização ou supressão do arbítrio? No livro, a ciência transforma um ser inescrupuloso num indivíduo modelo, incapaz de praticar o mal. Mas não o faz por consciência, mas por meio de um sistema que faz dele um verdadeiro aleijado psíquico, igualmente inábil para qualquer tipo de atitude que fuja a certas regras impostas artificialmente.
“Laranja Mecânica”, o filme, continua sendo visto e revisto, cinquenta anos após seu lançamento. O livro, de 1962, segue sendo lido e reeditado. Com seu final irônico, o filme mantém-se fiel às discussões do livro, retrabalhadas de modo magistral por Kubrick.
Meu velho exemplar do livro traz um glossário da gíria nadsat usada pelos personagens, espécie de mistura de idiomas ciganos, do russo e do inglês a que o leitor logo se habitua. Suas folhas soltas, a capa marcada, fazem lembrar um tempo em que censores decidiam o que era permitido ler, assistir, pensar. Eu era, então, pouco mais jovem que o personagem Alex. Não me tornei um delinquente, mas não creio que vivamos num país melhor por conta da censura, nem que ela tenha sido a responsável por fazer de mim uma pessoa mais consciente.
Edmar Monteiro Filho é crítico literário. E-mail: [email protected]