Jales Mendonça

Brasília, 21 de abril de 1960. Na simbólica data em homenagem ao herói nacional Tiradentes, ícone da Inconfidência Mineira, pontualmente às 11h30min, no plenário do Congresso Nacional, o presidente da Casa, João Belchior Marques Goulart (1919-1976 — viveu 57 anos), também vice-presidente da República, abre a histórica sessão de instalação do Poder Legislativo nos festejos de inauguração da nova capital do Brasil, enfim transferida do litoral para o interior do país.

Na presença de várias autoridades civis, militares e eclesiásticas, João Goulart, o Jango, designa uma comissão de parlamentares para introduzir no recinto o presidente Juscelino Kubitschek (JK). Ato contínuo, inicia seu pronunciamento tributando “justiça e apreço” ao Congresso Nacional, aos “lendários candangos” construtores da cidade, e ainda ao povo brasileiro, sobretudo ao povo carioca, que “nunca regateou os aplausos de sua identificação com o imperativo da interiorização da capital para a conquista dos imensos vazios do território pátrio,” frisou. (Diário do Congresso Nacional, 22 de abril de 1960, p. 82)

Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek

Em seguida, Jango enuncia o nome de duas personalidades, as únicas citadas por ele. A primeira, o presidente JK, a quem chamou de o “criador de Brasília”, além de “o idealizador e o artífice, o condutor audacioso e mesmo temerário, o permanente animador, o inexcedível distribuidor de fé, o primeiro responsável em suma”.

João Goulart e Getúlio Vargas
Getúlio Vargas e João Goulart: parecidos ma non troppo | Foto: Reprodução

A segunda personalidade mencionada é Getúlio Vargas, denominado de “gênio imortal”, e lembrado pela “marcha para o Oeste”, implementada nos primeiros dias da ditadura do Estado Novo (1937-1945).

A referência a Vargas era previsível, porquanto Jango tornara-se o seu principal herdeiro político após o suicídio, tanto que não só permanecia, desde 1952, no comando nacional do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), como se elegera vice-presidente da República pela legenda, em 1955, em cuja eleição, aliás, Jango alcançara votação mais expressiva que o próprio JK (assim como superou Milton Campos em 1960, como vice de Henrique Lott).

Malgrado Jango nutrir uma indisfarçável admiração por Getúlio, vale assinalar que, ao cotejarem-se ambas as biografias, aparecem várias semelhanças, a começar da origem comum de São Borja/RS e a vivência no ambiente rural da região missioneira gaúcha. No entanto, emerge igualmente uma notável diferença entre eles: a fé e o compromisso com os valores democráticos.

A verdade é que Vargas não nutria grande afeição pela democracia. Ele rasgou duas Constituições (1891 e 1934); governou 15 anos ininterruptamente quase sempre de forma autocrática; fechou duas vezes o poder Legislativo (1930 e 1937); cassou seis Ministros do Supremo Tribunal Federal (1931) e ainda censurou a imprensa.

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Juscelino Kubitschek e João Goulart: políticos de vocação democrática | Foto: Reprodução

Uma prova contundente dessa mentalidade centralizadora pode ser encontrada no seu pronunciamento do dia 11 de junho de 1940, entoado a bordo do encouraçado “Minas Gerais”. Impressionado com a tomada de Paris pelos nazistas, Vargas não chegou a alterar a posição de neutralidade adotada pela nação após a deflagração da Segunda Guerra Mundial no ano anterior, mas claramente manifestou sua simpatia pelo eixo Berlim-Roma-Tóquio, a ponto de o jornal “New York Times” interpretar a fala como “o primeiro discurso francamente fascista feito por um presidente sul-americano”.

A propósito, a cúpula de seu governo à época era composta por muitos germanófilos, a exemplo de Gois Monteiro, Eurico Dutra, Filinto Müller, Francisco Campos, Gustavo Capanema, Aristides Guilhem e Lourival Fontes, que inclusive gostava de ser chamado de “o nosso Goebbels”, por sua atuação à frente do poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). (Ruy Castro, “Trincheira Tropical — A Segunda Guerra Mundial no Rio”. Companhia das Letras, p. 175)

De modo diverso, João Goulart sempre cumpriu a cartilha democrática, demonstrou o seu inabalável compromisso com a democracia, na medida em que invariavelmente respeitou a legalidade, as instituições e a imprensa, sobretudo durante o seu consulado (1961-1964), inicialmente parlamentarista e, depois, presidencialista.

Luiz Alberto de Queiroz: pesquisador da história de Goiás e do Brasil | Foto: Diário da Manhã

Em todas as ocasiões em que fora estimulado a violar as regras da ordem liberal-democrática, Jango preferiu trilhar os limites estabelecidos pelo sistema constitucional vigente. No momento da renúncia do presidente Jânio Quadros, em agosto de 1961, por exemplo, criou-se no país, a partir do Rio Grande do Sul, uma enorme mobilização de massas denominada “campanha da legalidade”, com o afã de assegurar sua posse no Palácio do Planalto, já que vice-presidente da República em exercício.

Em entrevista no exílio, Jango reconheceu reunir na ocasião todas as condições para assumir o governo como chefe de uma revolução, por dispor de Exército, milícias estaduais e ter o povo ao seu lado. “Mas ao contrário de Quadros, não quis a ditadura,” registrou o entrevistador. Ademais, Brizola diversas vezes o concitou a romper a legalidade: “Se não dermos o golpe, eles darão contra nós”, aconselhava. (Moniz Bandeira, “O Governo João Goulart — As Lutas Sociais no Brasil (1961-1964)”. Editora Civilização Brasileira, p. 24 e p. 131)

Extrai-se de seu emblemático discurso do dia 13 de março de 1964, no comício da Central do Brasil (RJ), perante aproximadamente 150.000 pessoas, que as duas palavras que Jango mais verbalizou foram democracia e reforma. “Democracia, trabalhadores, é o que o meu governo vem procurando realizar, como é do meu dever,” sentenciou.

João goulart e juscelino 222

Poucos dias depois do famoso comício, porém, o grande pecuarista gaúcho foi deposto, sob a acusação de desejar implantar uma república sindicalista, nos moldes peronistas. Apesar da intenção de Jango de levar a efeito as “reformas de base” e modernizar o Brasil, seu governo acabou incompreendido e atropelado pela conjuntura dominada por um radicalismo ideológico patológico e pela bipolaridade da Guerra Fria, intolerante à política externa independente janguista, mais próxima do Movimento Não-Alinhado (MNA), criado na Conferência de Bandung, na Indonésia, em 1955. (Samuel Pinheiro Guimarães. “Quinhentos Anos de Periferia”. Editora Universidade UFRGS/Contraponto, p. 21).

João Goulart não é populista

Com efeito, parece equivocado enquadrar Jango no rol dos líderes do chamado populismo, que utilizavam a demagogia para entorpecer as massas e resguardar o domínio do grande capital. A rigor, João Goulart foi um reformista, mais próximo da linhagem social-democrata europeia da época. Essa representação, mais verossímil com a realidade factual, tem ganhado corpo, na esteira de um movimento de reparação histórica do único presidente brasileiro a morrer no exílio.

Por isso, recentemente Jango passou a figurar no livro dos heróis da pátria. Ademais, o Congresso Nacional, simbolicamente, anulou, em 2013, a sessão do dia 2 de abril de 1964, que declarou vaga a Presidência da República e, na sequência, devolveu seu mandato.

Nessa esteira, em boa hora, eis que surge o vigésimo terceiro livro (contabilizando-se as reedições) do escritor Luiz Alberto de Queiroz com o título “Jango — João Goulart e Outros Brasileiros”.

A obra se debruça sobre esse destacado personagem e acrescenta os depoimentos de Aldo Arantes, Cícero Lima, Pedro Wilson, Izaura Lemos, Marconi Perillo, Tarzan de Castro, André Gaetta, Waldire Laureano, Maria Dulce, Eliézer Bispo, José Muniz de Rezende e Tarso Genro, ex-ministro da Justiça.

Em seu texto intitulado “Luta pela reparação histórica”, Tarso Genro informa que concedera, em 2008, anistia a Jango, além de considerá-lo, ao lado de JK, “o maior presidente da República que tivemos no século passado”.

A exclusão de Getúlio Vargas, sempre lembrado nesse tipo de comparação, surpreende, sendo lícito deduzir que o frágil compromisso varguista com os valores democráticos, como já assinalado, tenha pesado na avaliação. Por fim, a análise reforça, ao mesmo tempo, a dimensão e o exemplo de João Belchior Marques Goulart para a incessante luta em defesa da democracia no Brasil.

Jales Guedes Coelho Mendonça é promotor de Justiça, doutor em História (UFG), presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), sócio-correspondente brasileiro do IHGB e membro da Academia Goiana de Letras (AGL). É colaborador do Jornal Opção. O texto acima, o prefácio do livro, é publicado com a autorização do autor.

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