Jacques Le Goff: o intelectual da Idade Média

05 abril 2014 às 13h17

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O historiador francês disse que “a Idade Média não era decadente, não era triste, mas sim soberba, até exagerada”

Ademir Luiz
Especial para o Jornal Opção
Consta que Isaac Newton, descobridor da Gravitação Universal, observou em certa ocasião que “se vi mais longe é porque subi nos ombros de gigantes”. Com essa frase o gigantesco Newton pagava tributo aos grandes homens que o antecederam e que o influenciaram. Contudo, em parte considerável das vezes, muitos dos anões que eventualmente se veem na situação de estarem nos ombros de gigantes, talvez esmagados por sua pequenez em comparação, ao invés de se sentirem gratos, preferem acertar insignificantes cascudos nos crânios colossais, iludindo-se que estão provocando algum dano. Eu sei bem disso.
Durante minhas pesquisas para o doutorado li o livro “Os Intelectuais na Idade Média”, obra clássica que o medievalista francês Jacques Le Goff publicou em 1957, aos 33 anos de idade. Em determinado momento notei que ele se equivocou sobre uma informação acerca das relações entre a Ordem Monástica Franciscana e o filósofo catalão Raimundo Lúlio (1232-1315). Um detalhe que, talvez, tenha escapado na revisão ou que simplesmente não estivesse totalmente resolvido na década de 1950, não sei. As possíveis explicações me pareceram irrelevantes, preferi ser uma hiena. Movido pelo mais mesquinho dos sentimentos senti-me feliz, e até certo ponto orgulhoso, por ter conseguido pegar o mestre em erro. Não tive nem mesmo a dignidade de guardar a vil conquista para mim mesmo, citei o trecho no trabalho e fiz questão de corrigir o erro numa nota de rodapé. Sempre se pode usar a desculpa da busca pela exatidão científica.
Quando li na internet a notícia sobre a morte de Le Goff, ocorrida no dia 1º de abril em Paris, aos 90 anos, lembrei-me desse episódio que, por algum motivo, remeteu-me ao filme “O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford”. Labirintos mentais e de memória que talvez dialogassem com a obra extraordinária desse que ficou conhecido como o “Historiador das Mentalidades”.
Jacques Le Goff nasceu na cidade de Toulon, no sul da França, em 1º de janeiro de 1924, filho de um professor de inglês. No liceu foi aluno de Henri Michel, que se tornaria um eminente historiador da Segunda Guerra Mundial, que o influenciou na opção de estudar História. Curso no qual se graduou em 1950. Depois de uma passagem por Praga, onde viu os tanques russos percorrendo as ruas (terá essa passagem influenciado o prólogo do romance “O Nome da Rosa”, de seu amigo Umberto Eco?), vai para Oxford como bolsista, de onde parte em 1954 para lecionar na Universidade de Lille. Quatro anos depois, conhece o historiador Maurice Lombard, especialista no Islã medieval, de quem se torna amigo e discípulo. É Lombard que apresenta Le Goff para o já lendário Fernand Braudel, autor de “O Mediterrâneo”, que ficou muito impressionado com o talento do jovem historiador, empregando-o como assistente na VI Sessão da École des Hautes Études em Sciences Sociales, que então dirigia.
É ali que o promissor historiador começa a se agigantar. Em pouco tempo foi reconhecido como um dos principais herdeiros da Escola dos Annales, um movimento historiográfico fundado por Marc Bloch e Lucien Febvre que propunha incorporar aos estudos históricos métodos das Ciências Sociais. Tornou-se um dos fundadores da chamada “Nova História” e em 1972 sucedeu Fernand Braudel na direção da École des Hautes Études em Sciences Sociales.
Jacques Le Goff dedicou-se à Antropologia Medieval, produzindo livros fundamentais para a compreensão do medievo, dentre os quais a biografia do rei francês “São Luís”, publicada em 1996, “A Bolsa e a Vida”, de 1997, “O Nascimento do Purgatório”, de 1981, e “Por um Novo Conceito da Idade Média”, de 1977. Publicou também uma série de ensaios sobre a profissão de historiador, com destaque para “Fazer História”, de 1986, em parceria com Pierre Nora, e “História e Memória”, de 1988. Também tratava de temas da atualidade. Seu livro “Por amor às cidade”, de 1998, é um bom exemplo dessa faceta. Nele Le Goff traça um paralelo entre as cidades medievais e contemporâneas, destacando Paris, que é analisada a partir de quatro grandes temas: poder, beleza, segurança e inovação.
Quando George Duby faleceu em 1996 se criou debates artificiais que contrapunham sua figura com a Le Goff. Quem é melhor? Quem é maior? Haverá herdeiros quando o “outro” se for? Fez-se com esses intelectuais quase uma dessas batalhas simuladas entre personagens da Marvel e da DC. Quem ganha na luta entre Batman e Capitão América? Uma verdadeira discussão sobre o sexo dos anjos. Não que não seja eventualmente divertida, mas não há sentido nesse tipo de comparação ou especulação. Duby, Bloch e Le Goff foram figuras únicas que, cada um a seu modo, contribuíram imensamente para o desenvolvimento do pensamento histórico.
Poliglota, fluente em inglês, italiano, polaco e alemão, além do francês, Le Goff considerava-se um homem de esquerda, embora anticomunista, e um militante por uma Europa forte e tolerante. Amplamente reconhecido como uma autoridade em História Medieval, Jacques Le Goff também gostava de assumir o papel de intelectual público, discutindo e opinando sobre os mais diversos temas. Articulado, professor e orador nato, em 1968 estreou no programa de rádio Le Lundis de L’Histoire, da rede France Culture, onde destilava toda sua erudição e, eventualmente, participava de polêmicas. Manteve essas excursões nas mídias de massa ao longo de toda a vida.
Amigo do escritor italiano Umberto Eco, aceitou coordenar o grupo de consultores históricos que ajudaram o cineasta Jean-Jacques Annaud na feitura da ambientação medieval do filme “O Nome da Rosa”, de 1986, baseado no romance homônimo de Eco. No documentário alemão “A Abadia do Crime” (1986), uma espécie de making-of do filme, ele aparece dando seu testemunho de que o que fizeram era o mais próximo que se poderia para reconstituir a Idade Média. Estrela acadêmica e intelectual, Le Goff teve ali seu momento de estrela de cinema. Como se diz em Hollywood: um filme é para sempre.
Não que seu sólido legado precisasse dessa solitária experiência cinematográfica para se perpetuar. Longe disso. Não estando mais entre nós, a respeitabilidade do nome Le Goff pode almejar a imortalidade. Quem lê sua obra, ainda que não o sinta, fará isso nos ombros de um gigante. Qualquer dúvida quanto a isso torna o incrédulo um goof (pateta). Eu sei bem disso.
Ademir Luiz, doutor em História, é professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG).