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Nonatto Coelho

Especial para o Jornal Opção

Os artistas da contemporaneidade dispõem de muitos recursos técnicos para que possam imprimir suas visões de mundo. Tais esses recursos têm ampliado sistematicamente na arte “post human”, apresentando ostensivamente na diversidade formal e de estilos composicionais, sejam em caráter bidimensional ou de outras dimensões espaciais e conceituais.

Pintura de Iza Costa

Na excitante e vertiginosa lida tecnológica da atualidade se abrem inúmeras plataformas, portais de ações humanas, ao deleite das peripécias dos artistas visuais, e se somam (jamais suprimem) aos recursos seculares tradicionais que os demiurgos de vários períodos históricos, se lançaram e lançam mãos, para concretizarem suas criações.

Em determinados momentos, especialmente quando surgem novas mídias envolvendo a criação artística, aparecem também “teorias” esdrúxulas de viés iconoclastas do tipo “a pintura está morta”, etc e tal…

 Dependendo da fonte, do contexto, essas teorias provocam reflexões e discussões reacionárias acaloradas no visceral multiverso da criação artística. Isso é saudável e democrático. São provocações pertinentes à dinâmica do pensamento filosófico e progressista do ser humano. Mas a pintura artística nunca morrerá.

Pintura de Iza Costa

 A arte, sabemos, é, por natureza, autofágica, e necessita se nutrir de seu passado.

 Até nos momentos de ruptura, a arte necessita de uma “ponte” que se conecta ao seu passado.

O Cubismo, que foi o movimento de grande rupturas no século passado, nasceu com uma Europa “deglutindo” a arte de tradição africana, para criar algo “novo” na pintura, e se tornou um movimento fecundo internacional, até hoje se desdobrando na arte contemporânea em “metacubismo genérico”   pelo mundo afora. É assombroso o que Pablo Picasso (1881-1973) conseguiu, introduzindo o Cubismo na estética moderna e contemporânea do Ocidente, e resvalando fortemente no Hemisfério oriental.

 O mesmo Oriente que, com suas gravuras tradicionais, também inspirou o mais importante movimento que, por sua vez, renovou a pintura ocidental com o advento do Impressionismo em 1871. Eis aqui o “ouroboros” na arte com sua constante famigerada autofagia.

Pintura de Iza Costa

Eu costumo dizer que a pintura nunca morre, ela nos acompanha desde os tempos das cavernas, e, se voltarmos pra lá novamente, ela nos acompanhará.

A arte muda em consonância com a vida social. No entanto, não evolui no sentido prático do termo. Um artista do período renascentista, por exemplo, não pode ser considerado menos evoluído do que um artista contemporâneo. Pode haver mudanças de representações contextuais de sua obra, mas, a experiência nos mostra que não se pode aplicar o termo evolução…

A pintura artística — o leitmotiv dessa imperfeita introdução literária — é um exercício perene ligado ao prazer do pintor(a) antes de qualquer representação conceitual de sua existência filosoficamente falando.

Pintura de Iza Costa | Foto: Reprodução

 A pintura muda no subjetivo, mas nunca vai perecer. Ela é “causa pétrea” no “tratado” universal da arte.

A natureza nobre de qualquer expressão artística é o fato de ela conter, em detrimento da intuição sensitiva do autor(a), sinais dos caminhos que a humanidade deve seguir.

 Os artistas são considerados uma espécie de “antenas” capazes de sentir, antever direções que serão trilhados pela humanidade.

 A arte viva é aquela capaz de decodificar os símbolos contínuos inerentes à natureza humana, e isso inclui tanto o amor, quanto a guerra, entre tantos outros sentimentos constantes da raça.

 Entretanto, não nos iludamos em relação à finalidade principal da arte, pois, mesmo que essencialmente ela tenha sua gênese em um momento de prazer ou de catarse (não importa), é linguagem universal, e sua finalidade principal não é decorar, e sim produzir pensamentos críticos, filosóficos, ou refletir sobre si mesma.

Em qualquer latitude do planeta o artista é portador de linguagem “comum” universal, centrado naquilo que está além de seu tempo presente, e isso não pode, não deve ser apenas exercício de vaidades ou de suposta ascensão social, mas sim de uma missão sacramentada, uma dádiva imbuída de responsabilidades no senso construtivo do termo. E que o demiurgo não ouse trair esse princípio ancestral e atemporal.

Arte é missão: em uma tradução livre e epidérmica do termo, pode se dizer que o artista tem, no exercício de sua função, a tarefa de se superar a cada limiar do sol.

Iza Costa: luz inspiradora

À luz inspiradora do Estado de Goiás, a arte viceja em cântaros generosos.

Ainda há pouco tempo, em 2021, ficamos órfãos de uma das artistas mais importantes da história de Goiás e o do Brasil: Iza Costa.

Mulher e artista criadora de forte personalidade, que nos legou uma das maiores e mais importantes produções nas artes visuais de nosso Estado e do país.

Sua arte — de um vigor expressionista que engloba tanto o Cubismo quanto o Fauvismo —, plasmada em cores contrastantes, é emblemática de uma expressão genuinamente de um viés autóctone. Dialoga com universal ao firmar o regional.

Uma grande expoente da xilogravura, uma muralista que conviveu na fonte de um dos berços do movimento modernista do gênero, que é o México.

Produziu enormes murais públicos tanto em Goiânia quanto fora da capital.

Iza tem uma obra de estilo pessoal inconfundível do início ao fim de sua longa e prolífica produção artística.

Com ela a arte Ameríndia se faz presente no coração do Planalto Central do Brasil, imprimindo um expressionismo denso, vigoroso, as vezes fauvista, sempre repleto de brasilidades como a alma verdadeira dos nossos povos do campo e da floresta.

 Não é gratuito o fato de a artista ter ido estudar história da arte no México, voltando à suas origens ancestrais, para beber na fonte de uma das expressões da arte universal de maior importância identitária, que resistiu heroicamente às investidas missões hegemônicas, impostas pela ditadura da estética artística, dos grandes centros do capital predador.

De uma certa maneira sua arte teve e ainda tem enfrentado resistências de aceitação em nossa região, onde o conservadorismo — o preconceito com os povos indígenas, aliado ao desconhecimento sobre a arte produzida localmente — ainda prevalece.

Os temas de Iza Costa são o homem da terra, suas lendas. Mas, no meu entender, o importante na sua obra, além do tema, é a expressão catártica que ela, assim como todo genuíno artista, exerce, para sua própria soberania de alma.

É o exercício da liberdade, o tema é (quase) uma mera consequência.

O legado dos artistas mexicanos para Iza era mais do que uma simples admiração, era uma comunhão espiritual direta; um laço de sangue que ela foi sentir, e estudar diretamente na fonte Asteca.

Foi com Iza Costa que aprendi a ver a arte singular de Frida Kahlo, no início dos anos 1980, quando ela me presenteou com um livro sobre o tema. Tive uma epifania.

Iza Costa nasceu em uma fazenda no município de Anicuns em 1942, realizou exposições em diversos países, seus trabalhos fazem parte de coleções no Brasil e no exterior.

Não há dúvida de que, com Iza Costa, estamos diante de uma das obras mais marcantes da arte verdadeira latino-americana.

Nonatto Coelho é artista plástico e pesquisador.