Huxley: a essência do homem dominado pelo medo é a perda de sua humanidade

22 novembro 2022 às 10h47

COMPARTILHAR
A verdade sem caridade não é Deus, mas uma Imagem e Ídolo, que nós não devemos nem amar e nem adorar, pois o nome de todo Ídolo é Belial.
Carlos Russo Jr
O ano é de 1948. As monstruosidades da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), do nazifascismo, ainda estão sendo contabilizadas; as barbáries do stalinismo, parcialmente conhecidas; o genocídio dos Estados Unidos em Hiroshima e Nagasaki, denunciadas. Os ventos de uma nova Grande Guerra na dita Fria, provavelmente a última por ser atômica, batiam às portas.
O inglês Aldous Huxley (1894-1963), o mesmo que escrevera há vinte anos (década de 1930) a distopia de “O admirável Mundo Novo”, retoma à pena para um novo alerta, ainda mais radical para o devir da humanidade: os perigos trazidos pelos avanços tecnológicos para fins bélicos, reduzindo-nos a animais bestiais.

“O Macaco e a Essência” (Globo, 202 páginas) é uma pequena obra-prima de estilo e engenhosidade, de enorme força dramática.
Afinal, despido de todos os valores civilizatórios, qual é a verdadeira essência do ser humano? A resposta de Huxley é dramática: a mesma dos macacos.
Já na década de 20 do século passado, Huxley foi uma das primeiras vozes isoladas a agitar questões que hoje mobilizam conservacionistas, naturalistas, ecologistas e pacifistas. E a compreender, com notável precisão, que as ondas de violência terrorista, das quais se tornou vassalo o mundo, assumem escala sem precedentes pelo culto desumanizante da tecnologia.
Pessimista extremado, declara-se repetidamente incapaz de imaginar uma solução que desvie a história da humanidade de um epílogo fatal, de um verdadeiro apocalipse.
No entanto, a evolução dos acontecimentos desde meados do século passado, não apenas reforçou essa convicção, como sugeriu formas para se retardar o desenlace anunciado.
O livro, um roteiro cinematográfico
O livro abre com dois amigos caminhando pelos estúdios de Hollywood, quando são surpreendidos por um caminhão carregado de roteiros rumo ao incinerador. Alguns desses roteiros ficam pelo chão e entre eles está “O Macaco e a Essência”, de um certo Tallis. Intrigados com a obra, os amigos decidem ficar com ela e começam a investigar suas origens. Mas a busca se mostra infrutífera e o roteiro nos é apresentado na íntegra.

O roteiro cinematográfico de “O Macaco e a Essência” se situa em princípios do século XXII, daqui a 100 anos. Expõe a visão apocalíptica das ruínas de um mundo devastado cento e tantos anos antes por uma terceira guerra mundial que, graças ao emprego de armas atômicas e bacteriológicas, durou apenas três breves dias.
Do único país pouco afetado pela devastação humana e ambiental, a Nova Zelândia, parte uma expedição de cientistas em um barco à vela, que aportará nas costas da Califórnia.
E lá se deparará com uma sociedade de símios ao lado de outra composta pelos descendentes dos humanos sobreviventes do extermínio.
Sociedades? Sim, uma sociedade fanática e supersticiosa, que não crê que o próprio homem poderia ter sido o causador de tamanha destruição e mal, se este não tivesse sido influenciado por uma entidade maligna externa. Ou seja, os visitantes irão se deparar com uma natureza humana na qual a violência, a brutalidade, as crueldades cruas somente possuem precedentes nos campos nazistas de extermínio, de tal modo que a ironia de Huxley culmina no gênero macabro.
Os californianos do século XXII consideram que a dita terceira guerra, a da destruição dos homens e do meio ambiente, tenha sido uma derrota definitiva do Deus bíblico. A vitória do Demônio, Belial, torna-se seu sacramento e culto.
O amor elimina o medo; mas reciprocamente o medo elimina o amor. E não apenas o amor. O medo elimina a inteligência, elimina a bondade, elimina todo o pensamento de beleza e verdade. Só persiste o desespero mudo ou forçadamente jovial… o medo elimina no homem a própria humanidade
De tal modo que o machismo chega ao paroxismo com a misoginia explícita. Mulheres são “vasos do diabo” feitas para o prazer masculino nas “festas beliais”, orgias que somente ocorrem uma vez por ano. Ao parirem, suas “crias” serão selecionadas na próxima festa e, aquelas com muitas deformidades, passadas a faca por sacerdotes castrados. Uma clara analogia com as práticas eugênicas do nazifascismo.
A marcha para o abismo
Para Huxley a marcha rumo ao abismo não mais pode ser detida, e os indivíduos dos dias de aquele então (1948), capazes de reunir em si os atributos de uma vida plena e harmoniosa, estão irremediavelmente condenados ao fracasso e à proscrição na sociedade pós-moderna e plutocrática, vulcanizada pelo domínio da máquina e da tecnologia.

E o grande canalha é o medo.
Conforme diria o narrador: “O amor elimina o medo; mas reciprocamente o medo elimina o amor. E não apenas o amor. O medo elimina a inteligência, elimina a bondade, elimina todo o pensamento de beleza e verdade. Só persiste o desespero mudo ou forçadamente jovial… o medo elimina no homem a própria humanidade.”
Um defensor dos valores básicos da vida
Antes de se dedicar à escrita, Huxley formou-se em Medicina. Uma doença oftalmológica o tirou da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), experiência essa que acabou sendo fundamental para que, enquanto assistia de longe aos horrores da guerra, o autor desenvolvesse seu senso crítico político e social.
Publicou sua primeira obra em 1921 e, entre contos, poesias, ensaios e romances, deu à luz a clássicos como “Contraponto” (1930) e “Admirável Mundo Novo” (1932). Foi relacionado nove vezes para o Nobel de Literatura, mas não chegou a levar o prêmio. Faleceu em 1963, depois de uma luta contra o câncer. Em sua hora fatal, pediu para que a esposa lhe injetasse uma overdose de LSD.
Como em todas as suas obras, e apesar de tudo, ele ainda insiste na necessidade do amor e da tolerância: são as únicas forças capazes de se opor as potências do mal.
“Toda vez que o mal é levado até o limite, ele se destrói a si mesmo. Depois, o que é a ordem das coisas retorna à superfície.”
Em “O Macaco e a Essência”, Huxley mais uma vez escancara os cânceres e suas metástases de nossa sociedade e nos convida a uma profunda reflexão sobre a condição humana e aquilo que chamamos de “progresso”.
Uma distopia profunda, talvez a mais pessimista de todas elas.
“Igreja e Estado, Ganância e Ódio — Duas pessoas símias, num Grande Gorila Supremo!”
Uma observação: no início do roteiro cinematográfico uma ponta de ironia do autor, quando vemos um macaco puxando por coleira um certo humano de nome “Albert Einstein”, apavorado, sendo fustigado e xingado. Provavelmente uma crítica satírica ao físico por ter sido o descobridor da Teoria da Relatividade Restrita, a da conversão da massa em energia, base teórica da criação da bomba atômica.
Carlos Russo é crítico literário.