Humanos famintos por eventos e cultura podem comemorar…

07 outubro 2021 às 11h08

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… Recomeçam os lançamentos de livros, como um romance de Ivanor Florêncio, na noite desta quinta-feira, em livraria do setor Universitário
Nilson Gomes
Especial para o Jornal Opção
O escritor e artista plástico Ivanor Florêncio Mendonça lança na quinta-feira, 7, seu primeiro romance, “A Terra Não É Para Humanos Famintos” (Editora Kelps, 252 páginas), na livraria Palavrear (Rua 232, nº 338, setor Universitário, em Goiânia). O evento começa às 7 da noite, mas é provável que o autor se atrase alguns minutos. O motivo justifica: o repórter o encontrou na tarde de quarta-feira, 6, em seu ateliê na Vila São José, como personagem de imenso painel. A única diferença entre o humano e sua arte era que um mexia os braços a pintar e o Céu da criação com o espectador a tragá-lo para si, longe do calor e das obras inacabadas (não necessariamente a pintura de Ivanor).
“A Terra…” tem recomendações para todo lado. A de um pesquisador da Universidade do México (nas orelhas), de um turismólogo na quarta capa, uma psicóloga (na apresentação), um professor da PUC-GO (o prefácio) e um cientista social (posfácio). Alma encomendada demais, já diria algum desses líderes religiosos envolvidos em escândalos, vai direto para a TV fazer culto — uns diriam que era para o inferno, outros preferem os sinônimos. Nem precisava desse tanto de gente para elogiar o texto.
Seu ídolo é o gênio holandês Vincent Van Gogh, mas se daria melhor com Euclides da Cunha, pois, mesmo não sendo nordestino (goiano de Morrinhos), Ivanor é um forte. Sim, como o de Copacabana. Lançar livro de papel, com pessoas físicas dentro de uma de pessoa jurídica, é feito digno de Prêmio Nobel de Literatura (e até de Física). Ivanor tem dessas. Agregador, seus endereços costumam ser coletivos. Um chega e toma conta da rede (aquela com punhos, não a www). Outro arrancha no tapete. Os mais folgados habitam os cômodos, a maioria nem percebe os incômodos para os residentes. E olha o ateliê se transformando em hostel. Assim é o livro, como foram os três anteriores, de poesia e contos, uma azáfama “utópica” (diz o cientista social).
A narradora do início do texto é uma pobre-diabo: trabalha em jornal e revista. Tipo Samsa de Kafka, acorda “sobressaltada meio que ainda em sono”. E embarca num pesadelo. Seu gigantesco inseto é um fosso. O monstro do prédio é a companhia elétrica (nada a ver com a realidade goiana #sqs). Lá fora — aliás: aqui fora — o caos, a tudificação do nada, a nadificação do tudo, como definiria algum bolsonarista ao saber que Ivanor é socialista e foi secretário de Cultura da Capital em administração petista.
Tropeça-se, aqui, ali, acolá também, em boas frases: “Com a barra da blusa limpei o vidro pra tirar a mancha que fiz com minha respiração quente e vasculhei detalhadamente até onde minha vista alcançou”. Tudo nadificado: “Nenhum carro”, nenhum objeto “depois das paredes do meu edifício”, “só um profundo vácuo”. Como no recente blecaute do Facebook e seus aplicativos, a filha da narradora inicial está exatamente nem aí para o fim do mundo: xinga a operadora do celular, “sem se preocupar com mais nada”. Protótipo da população da galáxia.
Resumindo a tudificação com um termo tão na moda: o cenário é distópico, seja lá o que isso signifique. Ivanor sabe: levaria “o resto da vida tentando descobrir o que tinha na cabeça do humano e o que havia acontecido lá fora”, conta pela voz da jornalista narradora. Impera o nada no reino da coisa nenhuma. A moça do celular enguiçado dá as respostas numa pergunta: “Que bosta foi essa?”. Ivanor aproveita piadas como a de determinada parte da anatomia despencar do ponto que a abriga. A indagação da filha da narradora não dura um parágrafo: “Todo mundo pirou de verdade”.

O mundo acabando, o mundo pirando e quem é o culpado? Acertou quem disse: Tim Maia. Habitantes do planeta inteiro (que, àquela hora, se resume ao prédio da editora do jornal) ficam zangados com o síndico. Que não fez isso, que não faz aquilo. A narradora é uma heroína não por sobreviver ao fim do mundo com os dois filhos e a casa inteiros, mas por tê-los criado sozinha com salário de repórter, após “a peste” do marido trocá-la “por sua secretária, mais nova e linda”. Como as mulheres socialistas de outros romances, deu o troco: “Nunca mais quis outro homem dentro da minha casa. Usava-os quando queria, precisava e, depois, os dispensava sem nenhum rodeio”.
O cientista social do posfácio, Paulo Victor Gomes, lavra um pingue-pongue:
“Qual a causa do cataclismo que, nesta vibrante narrativa, deixou a humanidade literalmente sem chão?”
“A própria humanidade”.
Demasiado humanos, personagens e ações se desenvolvem até entrar em cena não Nietzsche, mas Geraldo Vandré, aquele que não falou das rosas porque as rosas não falam: “Soldados fardados ou não começaram a sentir o cheiro das flores, das folhas, das cascas e até das raízes das árvores”. Quer dizer, policiais de outra armada, nada de faca na caveira, Rotam, Giro, pois “um contentamento generalizado povoou aquele ambiente antes hostil e até as pedras pareciam ter cheiro gostoso”.
Síntese: uma narradora acorda na cidade da oposição e Ivanor conclui o livro na terra prometida pelas campanhas eleitorais.
Entre o pré e o pós, há pinturas de Ivanor, veterano de dezenas de exposições em diversos lugares do Brasil (até em aldeias indígenas). Ao terminar a história, o leitor agradece por viver nesta bagunça organizada, sobrevivendo ao calor, ao trânsito e ao preço dos combustíveis determinado pela Petrobras. Ali estão o senador corrupto preocupado com a amante, o “coiso do diabo”, coletadores de recicláveis (aos quais dedica a obra), um tirano com seu “regime fascista e truculento”, os sujeitos sem predicados, o síndico cínico.
Que o fim da pandemia de Covid seja ao menos parecido com o do romance. Se houver pedras no meio do caminho, que sejam cheirosas. E que Ivanor as retrate na imensidão azul do painel de seu ateliê.
Nilson Gomes é advogado e jornalista.