Marina Teixeira da Silva Canedo

Especial para o Jornal Opção

“Sedare dolorem opus divinum est” — Hipócrates

Como os tempos mudaram!… De minha infância para hoje grandes transformações ocorreram, em todos os campos, e não vai aqui nenhuma novidade, senão um mero registro.

No período de apenas uma geração caíram por terra velhos hábitos, sem chance de retorno, o que nem sempre sinaliza ganhos quanto à qualidade dos novos valores.

O mundo se municiou de avanços científicos, de muita tecnologia, de desenvolvimento socioeconômico, e novos parâmetros foram incorporados ao “style de vie”, o que representa o desenvolvimento natural da dialética histórica que move o mundo.

Não é uma questão nova para ninguém. Mas quero me deter na vida que vi meu pai levar, por longos anos, como médico abnegado, em uma cidade do interior de Goiás, Inhumas. Era a década de 1940, quando meus pais para lá foram, vindos de São Paulo e do Estado do Rio.

A medicina era praticada pelos médicos de família. A relação médico/paciente era mais pessoal, íntima e direta.

Não havia a figura da secretária, que faz toda a parte burocrática e a cobrança antecipada. O pagamento ficava a critério do cliente, que geralmente dizia: “Depois eu pago doutor, põe na conta”, e muitas vezes não pagava.

Com certa frequência pagavam com frangos, ovos, leitões, etc. Meu pai, Cristiano Teixeira da Silva, imbuído pelos sentimentos humanitários e cristãos, sempre atendia a todos os necessitados, independentemente do recebimento pelo seu trabalho. 

Quando nos mudamos para Goiânia veio junto, como herança, uma pilha de contas de tratamentos feitos por ele e que não foram pagas… ossos do ofício de uma época que se findou.

O consultório do meu pai, que era um médico “fac totum”, daqueles que tinham inúmeras especializações para satisfazer as necessidades de tratamento — numa cidadezinha do interior há várias décadas — sempre funcionou integrado à nossa casa, com entrada independente. Horário não havia. Sujeitava-se à chegada do primeiro cliente e só terminava quando o último ia embora, sem preocupação com a hora. 

Mas, em geral, havia os chamados noturnos, em que meu pai era acordado no meio da madrugada para atender alguém que estava passando mal ou mulheres em trabalho de parto. E isso acontecia todas as semanas. E lá ia meu pai, cumprir sua missão de curador, aplacador de dores e receptor de crianças que chegavam ao mundo.

Quantas vezes esses chamados eram para atender pessoas que moravam na zona rural, onde, com frequência, não havia estradas que permitissem a passagem de carros. Meu pai, então, comprou três cavalos: um para ele ir para as fazendas, um para minha mãe, Margarida, e outro para meu irmão mais velho, Tito Nícias.

O dele foi comprado do sr. Sebastião de Almeida Guerra, grande amigo da família e político, tendo sido eleito prefeito de Inhumas por várias vezes.

E lá ia meu pai, atravessando córregos e rio, montado em seu cavalo alazão, levando o alívio para alguém necessitado.

Algumas vezes, quando ele chegava, a cura já não era possível, devido ao adiantado estado da doença, mas meu pai sempre deixava o doente medicado, o conforto para os parentes e a certeza de ter realizado bem o seu trabalho.

Outras vezes ele ia em seu carro até onde a estrada permitia, e ali alguém o esperava com um cavalo arreado.

Minha mãe e meu irmão utilizavam seus cavalos para fazerem passeios e conhecer os arredores da cidade. Temporariamente os cavalos ficavam em nosso quintal, mas um rapazinho os levava para o pasto, onde eram cuidados, e os trazia quando era necessário.

Esse rapazinho, de saudosa memória, foi Manuel Tolentino, que se tornou um grande líder universitário em Goiânia.

Em rápidas pinceladas, assim era a vida de um médico do interior, que sem as facilidades da vida moderna, incorporou o cavalo como meio de transporte para alcançar seus pacientes mais distantes e quase inacessíveis, homem inteiramente dedicado à sua profissão, à família e à igreja.

Meu pai foi fundador e sustentador da Igreja Metodista de Inhumas. Era graduado em Teologia pelo Instituto Granbery de Juiz de Fora (MG) e em Medicina, pela Faculdade de Medicina da Bahia (FMB). Um médico do corpo e da alma, como ele gostava de se definir.

Ao falar sobre meu pai, eu incorporo todos aqueles profissionais médicos abnegados que, heroicamente, pode-se dizer assim, contribuíram para o desenvolvimento de Goiás.

Marina Teixeira da Silva Canedo, poeta, prosadora e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.

Marina Teixeira da Silva Canedo foto de um poema