Herói de Cormac McCarthy é o passageiro que viaja para um destino que não consegue precisar

12 fevereiro 2023 às 00h00

COMPARTILHAR
O Passageiro é sobre pessoas e uma pessoa. É sobre solidão e amizade. Sobre a manifestação de um mundo que tende à melancolia e, por seu pessimismo e finitude, efêmero
Solemar Oliveira
Especial para o Jornal Opção
“O Passageiro” (Alfaguara, 392 páginas, tradução de Jorio Dauster) consagra Cormac McCarthy — autor do aclamado “Meridiano de Sangue” (Alfaguara, 353 páginas, tradução de Cássio Arantes Leite) — como o grande escritor norte-americano vivo e um dos melhores da literatura atual.
Cormac McCarthy não tem leitores — tem seguidores. Essa tribo mccarthiana, que cresce e ganha forma definida, discursa, para os quatro ventos, sobre a beleza rústica da trilogia da fronteira e a grandiosidade de livros como “A Estrada” e “Onde os Velhos Não Tem Vez”, que ganharam adaptações para o cinema com elevada qualidade e amplo reconhecimento. Com “O Passageiro” não é diferente. Tem o universo do escritor ampliado. O livro é mais um tomo, definitivo, na bíblia magnânima que disciplina seus asseclas.
Tenho uma tese pessoal sobre a maneira de escrever de Cormac McCarthy. A partir dela falarei do livro que, independentemente de opiniões, é um clássico literário instantâneo.
Nos grupos de conversa, bares, jantares, festas, em geral, as pessoas gostam de falar sobre diversos assuntos. É o que move os encontros. Uns mais que outros. Destacam-se temas como política (que eleva os ânimos), história, música, cinema, literatura, viagens e arte. Estes são bastante populares. Dificilmente veremos pessoas tendo discussões empolgadas ou calorosas sobre temas como física, química, engenharia nuclear e outras áreas das ditas ciências duras. A explicação é simples. Esses temas são complexos, chatos, enfadonhos. Envolve matemática. São difíceis de falar e de entender. Precisam de uma instrução prévia. Uma metodologia acadêmica. O risco de falar bobagens sobre um assunto de elevada complexidade é altíssimo. A conversa não evolui e os ouvintes, com seus rostos plácidos, apenas balançam as cabeças, esperam ansiosos que o interlocutor termine, e elogiam a eloquência do falante para, em seguida, mudarem de assunto. “O Passageiro” é sobre isso.

Cormac McCarthy, um gênio lúcido de 89 anos (90 em julho), distribui, com personalidade e propriedade, informações sobre amplos temas, inclusive física quântica. E aqui ele se supera.
Para desenvolver suas personagens, mostrar o mundo em que elas vivem, simular o universo real, no espaço e no tempo, de seu romance, Cormac McCarthy aprofunda a narrativa em tópicos insólitos e complexos com coragem. Ian McEwan fez algo parecido em “Solar”, onde arrisca embasar seu protagonista, um físico, com um modelo teórico desenvolvido por ele e dá indícios matemáticos de como ele funciona. McCarthy vai além.
O autor de “O Passageiro” apresenta conceitos, ideias acadêmicas. E mais: sem cometer erros. É, naturalmente, mais seguro quando fala de história, mas, como provou em “Meridiano de Sangue”, Cormac McCarthy fala de coisas complexas com mestria e sabe enredar o leitor em seu universo mostrando que toda informação que explora é útil e faz sentido. Conhece bem geologia, psicologia, armas, botânica. O céu é o limite.
Em “O Passageiro”, Cormac McCarthy fala de guerra, mostra detalhes de batalhas, arrisca definir instrumentos e armas, condensa filmes de ação inteiros em um de seus capítulos e homenageia os grandes livros e filmes de ação realistas importantes. Suas personagens são tridimensionais e, apaixonantemente, humanas. Saltam da página, para dizer um clichê.
“O Passageiro” é sobre pessoas e uma pessoa. É sobre solidão e amizade. Sobre a manifestação de um mundo que tende à melancolia e, por seu pessimismo e finitude, efêmero.

As nuances da natureza, seu entendimento e a compreensão de que o enredamento da amizade não nos exclui de termos que enfrentar os limites da vida sozinhos é a base do romance e seu maior trunfo. As definições dos tipos, que são muitos, suas ações e comportamentos, suas funções, exploradas à exaustão, presentes no texto, é, ao mesmo tempo, o fio da história e a vivência íntima do autor sobre as mais interessantes e improváveis personalidades.
É o caso de figuras emblemáticas e inesquecíveis, tais como Long John e Borman. O primeiro pela sua brutal interpretação da existência e escassez de vida e o outro pelo entendimento sujo, pessoal, cômico e equivocado da amizade. “Você é um filho da puta? Eu? Sem dúvida. Cem por cento? Cem por cento. Folheado a ouro em com garantia.”
A pessoa central do romance é Robert (Bobby) Western, um mergulhador que acompanha seus amigos em bebidas e discursos extensos, mas nunca cansativos, em locais ordinários, restaurantes e bares, principalmente de New Orleans. É por meio dos amigos que conhecemos sua personalidade e suas agruras. Os amigos que, ao longo do tempo, se ligaram a ele de forma indelével. Os laços que, guardadas ressalvas, ligam leitores e autores de textos literários, como é Cormac McCarthy.

Pois, vistos de fora, esses amigos (leitores) devem representar a quintessência do pensamento mccarthiano, sintetizado na passagem: “Mas eu lhe digo, Squire, que termos lido algumas dezenas de livros em comum constitui uma força mais potente que o sangue”.
Bobby é mais do que apresenta. Seu pai era físico e esteve envolvido no projeto de construção das primeiras bombas atômicas. Abandonou o doutorado em Física para ser mergulhador e é apaixonado pela própria irmã, uma conhecedora de matemática introvertida, esquizofrênica, que cometeu suicídio. É com essa carga dramática densa, e um mistério que paira, que Cormac McCarthy desenvolve seu livro.
Cormac McCarthy não espera agradar. Quer mostrar um ponto de vista. Afinal, como diria Borman: “As pessoas são uma porra dum enigma”.
O que mais impressiona neste romance de Cormac McCarthy é o esboço inédito feito para a redefinição do termo alma gêmea.
Por meio de uma investigação cuidadosa da loucura, penetrando em um universo caótico e sofisticado, o velho Cormac McCarthy interpreta a mente de uma garota, Alicia, que, impedida de ser espontânea, jovial e livre, convive com as personificações de seus medos, como entes visuais de carne e osso, que desempenham papéis sinistros de controle e têm os comportamentos que ela deveria ter, caso fosse uma pessoa normal.
A personagem é a irmã de Bobby Western, que vive em um mundo à parte. Nele existem criaturas dos mais diversos tipos, brutas, engraçadas, estranhas, figuras de circo, aberrações, por assim dizer. Elas são tão reais quanto é possível para uma mente criativa. Agem segundo a personalidade de Alicia. Ela, por sua vez, tenta controlar essa esfera prestes a expandir e sair do controle. Não pode ser o que deve ser toda adolescente. Não pode fazer o que faz toda garota: errar, aventurar-se, mergulhar espontaneamente na vida. Precisa conter a bomba relógio que possui internamente.
Sabemos, muito cedo, que Bobby Western ama a irmã, e não como membro de sua família. A doença de Alicia é o desastre de Bobby Western.
Cormac McCarthy extrapola a ideia. À maneira de quem sonha com um ente querido que não vê há tempos, que carrega uma mensagem muito particular e a entrega envolta de elementos mágicos, enigmáticos. Bobby Western compactua com o universo da loucura da irmã, sua amada, e tem os mesmos devaneios insólitos, com os mesmos indivíduos oníricos. Separados por um infortúnio, ainda são íntimos.
No final entendemos, pelo menos nessa primeira parte (o livro é um de dois; o segundo é “Stella Maris”, já disponível em inglês), que nem os amigos, nem o amor.
“O Passageiro” é a saga de Bobby Western contra inimigos muito pessoas. O passado, dentre todos, o pior.
A lembrança de existir à beira do abismo, outro inimigo que faz ruir. E o futuro, uma indeterminação matemática cuja equação impossibilita a solução. “Não podemos ver o que vem pela frente, Bobby. E mesmo que pudéssemos, nada garante que faríamos a escolha certa.”
Nos moldes de “Todos os Belos Cavalos”, o herói de Cormac McCarthy é um passageiro, que viaja para um destino que não consegue precisar, pois “onde quer que você desembarque era desde sempre o destino do trem”.
À revelia de todas as amizades e teorias sobre as relações entre pessoas, destiladas com precisão pelas personagens do autor, o homem mccarthiano ainda vive sozinho, rígido e, sempre, à margem.
Solemar Oliveira é físico e escritor.