Herberto Helder, o poeta que tinha como obsessão arrancar palavras da alma

28 março 2015 às 11h38

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Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção

Se Fernando Pessoa (1888-1935) foi a figura de proa da poesia portuguesa na primeira metade do século XX, na segunda esse espaço foi ocupado por Herberto Helder (1930-2015), um poeta fascinado pelo poder encantatório da linguagem, decorrente do uso ritual da palavra, como observou Maria Estela Guedes num dos dois livros que escreveu sobre essa personagem mítica, “Herberto Helder, o poeta obscuro” (Lisboa, Moraes Editores, 1979).
De fato, como observa a autora no segundo livro que dedicou à produção do poeta, “A obra ao rubro de Herberto Helder” (São Paulo, Escrituras, 2010), em todos os seus poemas está presente um tipo de magia fundada no trabalho poético sobre as palavras. E que, especialmente, procura imagens na Natureza. Esse trabalho pode ser sintetizado nestas palavras de Helder, que estão no o prefácio de seu livro “As magias”: “(…) Mas as palavras não são apenas palavras. Tem longas raízes tenazes mergulhadas na carne, mergulhadas no sangue, e é doloroso arrancá-las”.
Arrancar palavras da alma parece ter sido a obsessão desse poeta que, a exemplo de José Saramago (1922-2010), único Prêmio Nobel da Literatura Portuguesa, não colocou na parede diploma de nenhuma universidade. Se Saramago, que também foi bom poeta, além de excepcional romancista, não frequentou os bancos de nenhuma faculdade, Helder chegou a matricular-se na Universidade de Coimbra, mas não concluiu nenhum dos cursos que fez. Formou-se, isso sim, na universidade da vida. Sem contar que sempre foi um ávido leitor, não só de poetas e romancistas europeus, como de poetas latino-americanos como o mexicano Octavio Paz (1914-1998), o argentino Jorge Luís Borges (1899-1986) e o chileno Vicente Huidobro (1893-1948).
Como se lê na biografia “Herberto Helder, a obra e o homem” (Lisboa, Arcádia, 1982), que escreveu a professora Maria de Fátima Marinho, vice-reitora da Universidade do Porto, o poeta, nascido no Funchal, sempre esteve na contramão da sociedade bem comportada. Por isso, sua figura, a partir da notoriedade de seus versos, passou a ganhar uma aura mítica, que só aumentou nos últimos anos, depois que se refugiou num pretenso anonimato, recusando-se a receber prêmios literários, como o Fernando Pessoa, na década de 90, e a conceder entrevistas e até a deixar-se fotografar.
Em linhas gerais, viveu uma vida em construção, sem muito apego a valores burgueses: foi propagandista de produtos farmacêuticos, redator de publicidade e outros ofícios. Sabe-se também que viveu precariamente como imigrante em países como França, Holanda e Bélgica, onde igualmente desempenhou trabalhos que os naturais do lugar se recusam a fazer. Em Antuérpia, teria sido guia de marinheiros e turistas nos meandros da zona do meretrício. E até cantor de tangos. Só em 1960, depois de voltar a Lisboa, conseguiu um emprego mais estável como encarregado das bibliotecas itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian que viajavam pelas vilas e freguesias do país. Foi ainda repórter e redator por dois anos de uma revista em Angola, às vésperas da derrubada do regime colonial.
Morto o poeta, naturalmente, agora abundam os elogios das fontes oficiais, mas a verdade é que Herberto Helder, ainda que tenha publicado uma vasta obra, foi um poeta marginal e desconhecido em Portugal por muito tempo – e mais ainda pelo público e até mesmo pelos acadêmicos brasileiros. Só nos últimos tempos passou a ser mais reverenciado e seus livros procurados – um ou outro chegou a alcançar tiragem de cinco mil exemplares, o que é surpreendente em se tratando de poesia. Se sua poesia transcendeu a de Fernando Pessoa, ainda não se pode dizer. Se não chegou a tanto, passou perto.
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP