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Edmar Monteiro Filho

Por definição, a guerra é um combate armado entre grupos, com o fim de impor supremacia ou salvaguardar interesses materiais ou ideológicos. Ainda que a palavra possa qualificar também, por analogia, todo conflito entre duas ou mais partes, a guerra clássica supõe a violência explícita, morte e destruição. Em toda guerra, com interesses difundidos entre diferentes nações e grupos, formam-se e se desfazem alianças, alimentando os contendores com apoio logístico, estratégico, midiático, engrossando o calibre desse canal de atrocidades, que acaba extravasando e contaminando o mundo.

O território ucraniano abriga a guerra da vez: armam-se os vizinhos, o continente transborda de refugiados, negociam-se apoios. Na Síria, já nos esquecemos de um conflito interminável. As duas Coreias se estranham. A China ameaça os EUA com retaliações militares. Afeganistão, Eritreia, Iêmen, onde mais? Nunca esquecer que a indústria bélica é um negócio extremamente lucrativo, que se alimenta de nosso desejo atávico de destruir o semelhante. Sob pretextos diversos — insegurança, defesa, dissuasão — armam-se povos e indivíduos dispostos a matar. Pessoalmente, desconfio do aumento exponencial de clubes de tiro esportivo, da audiência maciça direcionada às lutas violentíssimas no estilo MMA, da procura por jogos que simulam combates reais. Vale questionar por que ainda funciona a política de ódio e medo, destinada a pintar um adversário das ideias como inimigo a ser eliminado. Nossa civilização é construída sobre os escombros das batalhas, mas quantos tiveram, quantos teremos a audácia de tentar algo diferente? 

Neste mundo contaminado pelo espectro da guerra é natural que a literatura, como construtora de realidades, ofereça seu quinhão de relatos sobre conflitos bélicos de todo tipo e em todas as épocas da história. Lutou-se e luta-se pela conquista de povos, riquezas e territórios. No terreno da ficção científica é possível especular indefinidamente sobre esses objetivos, sem perder de vista seu propósito último: subjugar, humilhar, eliminar o inimigo. “Guerra Sem Fim” (Aleph, 354 páginas, tradução de Leonardo Castilhone), de Joe Haldeman, clássico do gênero, oferece uma das mais contundentes narrativas sobre a guerra jamais escritas.

O enredo, a princípio, repete relatos semelhantes: a preparação de um grupo de recrutas para entrar em combate. Algumas diferenças, entretanto, instigam de imediato a imaginação do leitor: o inimigo a ser enfrentado está a dezenas de anos-luz da Terra e possui aparência, tecnologia e objetivos totalmente ignorados. E mais: ninguém é capaz de apontar com absoluta certeza os motivos por trás do conflito.

Alguns outros detalhes conferem originalidade única à trama. No início do século XXI imaginado pelo autor, o homem detém tecnologias capazes de transportar uma espaçonave para regiões infinitamente distantes do cosmo em segundos, o que trouxe enorme avanço para a exploração e colonização de outros mundos. Concomitantemente, a ciência viu-se estimulada a desenvolver uma série de conhecimentos capazes de permitir viagens seguras e estruturas de sobrevivência em distintos planetas. Então, repentinamente, uma espaçonave terrestre desaparece sem deixar vestígios. Sua destruição, atribuída aos “taurianos” e ao interesse de domínio dos chamados “planetas portais”, deflagra a guerra e a corrida por novos e terríveis artefatos de destruição.

Haldeman, veterano da guerra do Vietnã, mescla seus conhecimentos à habilidade ficcional para fornecer credibilidade às descrições das batalhas, intensas e cruas. Graduado em física e astronomia, descreve situações extremas sob condições atmosféricas hostis, num cenário em que viagens com a duração de meses pelo espaço representam décadas na vida dos soldados. Assim, o soldado Mandella, peça central da trama, enfrenta missões sucessivas durante um período de poucos anos, enquanto a Terra e seus habitantes envelhecem séculos. O mesmo se passa com relação à tecnologia. O armamento usado durante um combate numa remota região da galáxia pode ser esmagadoramente superior ou representar séculos de atraso quando comparado ao utilizado pelo adversário. Mandella enriquece com salários acumulados por centenas de anos, créditos que somente serão aceitos em locais determinados pelo exército. A Terra passa por ciclos de prosperidade, ruína e violência. O idioma sofre alterações tais, que se torna incompreensível a cada retorno. E os soldados seguem aprisionados por uma estrutura de absurdo, incapazes de enxergar sentido numa guerra que se desenrola séculos afora, alimentada por combates que duram instantes. 

“Guerra Sem Fim” é um original e atualíssimo libelo contra a manipulação de informações e vidas para fins escusos, contra a feroz inutilidade da guerra. Sua mensagem poderosa incita a pensar sobre a adesão irrefletida a propostas de violência e que, independentemente do resultado, na guerra não há vencedores, apenas vencidos.

Edmar Monteiro Filho é crítico literário. E-mail: [email protected]