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Vinícius Pereira de Mesquita*

Diante do compêndio biográfico “Apenas um Poeta”, ergue-se uma figura que desafia o lugar-comum dos itinerários literários: Gabriel Nascente. Nele, tudo é movimento e detonação; tudo converge para um ponto em que existência e poema se tornam indissociáveis. Sua obra não pode ser lida, mas decifrada como um mapa hidrográfico da alma, onde cada livro marca a cheia de um rio particular que deságua no oceano coletivo. Este ensaio defende a tese de que a poesia nascentina é, simultaneamente, correnteza biográfica, o impulso que arrasta o homem pela torrente da história, e pequi-atômico, o núcleo explosivo de linguagem que, embora fincado no solo goiano, irradia uma energia universal. Em cinco movimentos, demonstraremos como esses dois vetores convergem num estuário estético singular, capaz de converter perda, exílio e pandemias em material de arte de longa meia-vida.

I. Correnteza existencial: o rio que forja o poeta

Nas páginas iniciais do livro, a metáfora da água já estala: a morte prematura do pai aos 36 anos abre “uma vala de escuridão”, uma nascente turvada que empurra o menino para a maturidade antes da hora. O luto não o paralisa; precipita-o. Em vez de se deter num remanso memorialístico, Nascente transforma a dor em fluxo criativo. A correnteza adensa-se na juventude com a rebelião estudantil, as invenções quixotescas (o “submarino” do “Cientista Louco”) e as leituras vorazes de Edgar Allan Poe e Augusto dos Anjos. Cada evento acrescenta um afluente ao seu caudal.
O volume de águas torna-se torrencial na década de 1970. A ditadura militar, com seus cárceres e silêncios, empurra o poeta para a clandestinidade argentina. Não há margem segura: ele escreve em jornais de oposição, apaga rastros, convive com o medo. Contudo, ao contrário de quem apenas descreve o rio, Nascente funda-se na própria água. O resultado é Reflexões do conflito (1970), livro louvado por Carlos Drummond de Andrade como o testemunho de uma “personalidade poética intensamente mergulhada no drama do mundo contemporâneo”. A correlação aqui é cristalina: quanto mais violento o fluxo histórico, mais urgente se torna o verso. A vida não é tema; é matéria-prima e ferramenta.

II. Pequi-Atômico: da raiz cerratense ao impacto universal

Se a correnteza lhe dá o movimento, o pequi lhe dá o sabor e a massa crítica. Em Nascente, o regional não é folclore exótico, mas o núcleo de um reator. A polpa amarela, robusta e aromática do fruto goiano converte-se em metáfora de uma poesia que, originária de um bioma específico, contém potência para abalar fronteiras planetárias. Obras como A Torre de Babel (2000), com mais de 600 páginas, ou Viagem às criptas de Dante (2007), atingem proporções épicas, sem jamais abdicar do “chão vermelho” evocativo do Cerrado. É da casca espinhosa do pequi que emerge a fissão verbal capaz de repercutir em francês, espanhol, inglês e até em cartas oficiais do Vaticano.
Este processo confirma a hipótese de que quanto mais enraizada a palavra, mais longe ela ressoa, uma dialética que faz da singularidade a senha para a universalidade. A energia liberada pela sua poesia valida a percepção de Menotti del Picchia, que o viu como “uma espécie de Fernando Pessoa da quadra atômica”, cujos versos “explodem como brados de protesto e irreverência”. O combustível é local, mas a detonação é cósmica.

III. Quatro atos de um mesmo drama: o arco cronológico da obra

A simbiose entre vida e obra pode ser mapeada em quatro fases distintas, que funcionam como atos de um mesmo drama existencial:
Gênese (1950-1960): A infância na Goiânia “menina, descabelada” e o primeiro livro, Os gatos (1966), marcam a descoberta da palavra como catarse e destino. A poesia não é uma escolha, mas um diagnóstico: “a doença era mesmo a poesia”.
Trincheira (1967-1979): Período do jornalismo de resistência e do exílio. Obras como Menino de rua (1970) e El llanto de la tierra (traduzido na clandestinidade) são testemunhos diretos da opressão. Aqui, a voz poética se torna uma granada sem pino, uma arma de sobrevivência.
Consolidação (1980-1999): A conquista de prêmios como o Cruz e Sousa por A lira da lida (1996) e o estatuto de memorialista em Sentinelas do efêmero (1992) marcam a transição do combatente para o guardião da memória de sua época.
Monumentalidade (2000-2021): O poeta se lança a obras de fôlego e, por fim, a A Ópera dos Ausentes (2021), escrita “à mão, de pé e andando” no vórtice da COVID-19. A correnteza global encontra o pequi-atômico e desencadeia o canto mais longo e doloroso de sua carreira.
Esse arco comprova que nenhum título nasce no vácuo: cada livro é uma onda de choque proporcional ao evento biográfico ou histórico que o engendrou.

IV. A lógica da fusão: poética do movimento permanente

Há, em Nascente, uma recusa programática da estagnação, tanto na vida quanto na forma. Sua metodologia, “escrever de pé, em deslocamento”, literaliza a ideia de que o poema deve pulsar ao ritmo da circulação sanguínea do mundo. A técnica do manuscrito ambulante atravessa décadas, conectando o adolescente que rabisca versos na escola ao acadêmico imortal que coleciona prêmios. Sua coerência não é a da rocha imóvel, mas a do rio que, embora sempre em fluxo, mantém sua identidade.
Esse modus operandi desautoriza a leitura de sua obra como um conjunto de peças “acabadas”; ao contrário, cada publicação é uma fotografia instantânea de uma correnteza que segue seu curso. Talvez por isso o título Apenas um Poeta contenha uma ironia lapidar: é “apenas” um poeta que, a cada nova enchente, reinventa o próprio leito e a própria voz.

V. O estuário e a luz

Somando a correnteza da vida e o pequi-atômico do verso, chegamos ao estuário onde o rio biográfico deságua no mar da literatura universal. A água, antes turva de luto e política, encontra-se com o fogo nuclear da linguagem e irradia uma claridade de longa duração. Assim como a nascente de um grande rio é “apenas” água que move cidades inteiras, e o núcleo de um átomo é “apenas” matéria capaz de iluminar ou destruir civilizações, Gabriel Nascente habita essa paradoxal e poderosa simplicidade: é “apenas” um poeta, e, portanto, uma força natural de alta voltagem simbólica.
A trajetória aqui analisada demonstra que, quando vida e arte se interpenetram ao ponto de se confundirem, o poema deixa de ser adorno e converte-se em instrumento para compreender o próprio tempo. Ao permitir-se ser arrastado pela correnteza e, simultaneamente, explodir em pequi-verso, Nascente evidencia que o ato de poetar é duplamente radical: submete-se ao real para, em seguida, reconstruí-lo com a energia de quem domina o núcleo da palavra.
Em síntese, declarar-se “apenas um poeta” equivale a dizer: apenas a nascente de toda luz possível. E isso, convenhamos, jamais será pouco.

*Vinícius Pereira de Mesquita é autor e médico.