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Sinval Martins de Sousa Filho e Leonardo Freitas Pereira

Um novo estudo publicado na quarta-feira, 15, na “Science Advances” promete reabrir – e talvez encerrar – o mais antigo dos mistérios humanos: como surgiu a linguagem. O trabalho, liderado pelo neurocientista brasileiro Alysson Muotri, da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA), propõe que a exposição intermitente ao chumbo, há cerca de 2 milhões de anos, teria sido um gatilho decisivo na evolução cerebral que possibilitou a emergência da linguagem articulada.

A hipótese – ousada, inédita e profundamente interdisciplinar – combina genética evolutiva, neurociência e biologia molecular para explicar o que filósofos e linguistas vêm discutindo há milênios. De Platão e Aristóteles a Chomsky e Tomasello, a questão sempre girou em torno de se a linguagem é um dom inato, cultural ou adquirido pela interação. Agora, Muotri introduz um novo elemento na equação: o metal pesado que quase nos matou também pode ter nos feito falar.

O elo molecular: NOVA1, FOXP2 e o enigma do chumbo

A equipe de Muotri comparou organoides cerebrais (minicérebros cultivados em laboratório) contendo versões humanas e neandertais de dois genes cruciais para o desenvolvimento neural: NOVA1 e FOXP2, este último conhecido como “o gene da fala”.

Os resultados surpreenderam: a variante moderna do NOVA1, presente em todos os Homo sapiens, regula de modo distinto a expressão do FOXP2 – e essa diferença, segundo o estudo, pode ter surgido como resposta adaptativa à contaminação por chumbo em ambientes pré-históricos.

“Acreditamos ter descoberto por que o cérebro humano moderno resistiu à toxicidade do chumbo e ainda assim floresceu cognitivamente”, afirmou Muotri.

“Essa mutação em NOVA1 não só protegeu nossos ancestrais, como potencializou as redes sinápticas associadas à linguagem e à cooperação social.”

A hipótese do “chumbo criativo”

De acordo com o modelo experimental, antigos hominídeos que habitavam cavernas com águas contaminadas ingeriam pequenas doses de chumbo desde a infância. A exposição crônica provocava alterações neuronais letais – exceto naqueles com uma versão mais resistente do gene NOVA1.

Esses sobreviventes teriam desenvolvido maior conectividade sináptica e controle motor-fonético refinado, abrindo caminho para formas mais complexas de comunicação vocal. Assim, o metal tóxico teria funcionado como um filtro evolutivo, favorecendo indivíduos com cérebros mais adaptados à linguagem.

Além do inatismo e do empirismo

O estudo dialoga indiretamente com teorias clássicas da aquisição da linguagem. Enquanto Chomsky postulava um “módulo linguístico inato” e Tomasello via a linguagem como produto da cultura e da intenção comunicativa, Muotri propõe uma terceira via biocultural: a linguagem teria emergido como consequência evolutiva de pressões ambientais extremas, moldando geneticamente a estrutura neural predisposta à fala.

Essa hipótese aproxima-se da discussão contemporânea sobre inatismo neurogenético, como explorado no artigo “Inatismo e Diversidade Humana” de Sinval Martins de Sousa Filho e Leonardo Freitas Pereira, que enfatiza a interação gene-ambiente como núcleo da diversidade cognitiva.

Da caverna à mente: o FOXP2 em novo papel

O FOXP2, historicamente considerado o “gene da fala”, aparece aqui não como causa isolada, mas como parte de um circuito regulado pela NOVA1 – e sensível à contaminação por chumbo. Quando exposto ao metal, o NOVA1 arcaico (neandertal) alterava a expressão do FOXP2, levando à morte de neurônios ligados à linguagem complexa. A versão moderna, em contraste, protegeu essas conexões, permitindo o desenvolvimento da linguagem articulada e de estruturas sociais sofisticadas.

A revolução dos organoides e o cérebro “fora da curva”

Usando organoides – minúsculos cérebros cultivados a partir de células-tronco –, Muotri simulou a evolução neural e demonstrou que o cérebro humano é um caso atípico em termos de complexidade e plasticidade linguística.

“Nem mesmo os neandertais parecem ter tido capacidade cognitiva para produzir fala complexa”, afirmou.

Com isso, o estudo não apenas lança luz sobre a origem da linguagem, mas também propõe uma nova matriz explicativa para distúrbios neurolinguísticos, como autismo e apraxia de fala – condições diretamente ligadas aos mesmos genes analisados.

Implicações éticas e científicas

O “efeito chumbo” na evolução humana reconfigura o debate sobre o que é inato. Se a linguagem emergiu de uma interação entre mutações genéticas e fatores ambientais tóxicos, a fronteira entre natureza e cultura torna-se ainda mais tênue.

Para Sousa Filho e Pereira, autores do artigo “Reconciliando a abordagem baseada na criatividade de Franchi com a estrutura linguística de Chomsky”, essa descoberta redesenha o ensino de gramática: “A criatividade linguística, antes pensada como faculdade abstrata, agora pode ser entendida como fruto de uma complexa coevolução entre biologia e ambiente – entre a célula e a palavra”.

Um novo paradigma

O estudo de Muotri inaugura o que alguns já chamam de “neuroarqueologia da linguagem” – uma ciência que cruza fósseis, genes e ideias.

Se confirmada, sua hipótese supera dualismos milenares e oferece uma resposta surpreendente: a linguagem humana nasceu da adversidade.

Do veneno à voz, do chumbo ao verbo – a fala pode ser o produto mais improvável da toxicidade da Terra.

Sinval Martins de Sousa Filho é professor da Universidade Federal de Goiás e Leonardo Freitas Pereira é aluno da pós-graduação em Linguística da UFG.