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Influenciada por Chico Buarque e Caetano Veloso e Clarice Lispector e Pizarnik, a poeta constrói seu próprio percurso

Ademir Luiz

Fernanda Marra: poeta e doutoranda em Teoria da Literatura na UnB | Foto: Arquivo pessoal

A poeta Fernanda Marra é doutoranda em Teoria da Literatura na Universidade de Brasília (UnB). Sua proposta de escrita pretende diminuir ao máximo as fronteiras entre a linguagem acadêmica e a escrita poética. Este é apenas um dos temas presente neste diálogo. Ela está lançando “taipografia”, publicado pela Editora Martelo. É o segundo livro da poeta, que havia lançado “Voo Livre” em 1996. Manteve entre 2008 e 2015 o blog “Marés e Ressacas”, no qual publicou sua produção, reconhecidamente influenciada por mestres da MPB, como Chico Buarque e Caetano Veloso. Entre poesia e música transita essa jovem artista com a qual conversamos sobre literatura na internet, leituras e não leituras, pesquisa em diários íntimos de escritores e muito mais.

Cecília Meireles (1901-1964) preferia ser chamada de poeta (no poema “Motivo”, escreveu: “Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre nem sou triste:/ sou poeta”). Então, poeta ou poetisa?

Poeta: substantivo comum-de-dois-gêneros. Acho bonito porque, primeiro, é comum; segundo, porque de dois gêneros simultaneamente e, depois, porque a regra, em si, é que (des)faz a exceção. Nesse caso, nem é preciso quebrar o pau da/com língua. Quem inventou aquela dupla marca de feminino (poetisa) é que complicou a coisa com a redundância. Ora, o feminino já estava contemplado lá no nome que designava todo mundo. A dupla marca do feminino é forçada e serviu, durante um longo período, para distinguir a literatura em geral – cujo modo de fazer, por questões socioculturais e políticas, era ditado pela escrita de escritores homens – do braço menor, uma escrita feita por mulheres e para mulheres, de valor estético questionável e tônica sentimentalista. Minha escrita não é isso e considero que o rechaço a essa designação “poetisa” tem um caráter absolutamente político e legítimo. De nomes que recebemos sem escolher e temos de suportar para o resto da vida, basta o que ganhamos ao nascer e o da família.

Acredita que existe literatura feminina ou apenas literatura?

Existem tantas coisas quantas conseguirmos criar e acredito que nomear é um gesto de criação. Mas quero apontar, a propósito, diferenças entre duas expressões: “escrita de autoria feminina” e “escrita feminina”. Em linhas muito gerais, com a primeira estão alinhados os estudos que buscam a visibilidade das escritas realizadas por mulheres e que foram/são alvo de apagamento histórico. A segunda expressão tem um viés conceitual. Da forma como a entendo, trata-se de um modo de agir com a língua que questiona seu estatuto de lei e os valores consignados a esse dispositivo. Não se trata exclusivamente de uma designação de literatura feita por mulheres, nem para mulheres. É uma subversão da norma pelas entrelinhas, pelos eixos de articulação linguística em seus diversos níveis (fonético, semântico, sintático, morfológico, pragmático). Essa “escrita feminina” é, antes de tudo, uma escrita que põe em questão o falogocentrismo que funda a história ocidental. Nesse sentido, se a escrita feminina pode ser considerada literatura menor não é no sentido de ser inferior em relação à literatura, mas de ser uma versão subterrânea, subdesenvolvida, uma subversão dessa escrita de arranha-céus por uma taipografia. É por isso que essa escrita não tem uma fórmula. As formas se inventam escrevendo, experimentando a equivocidade e o movimento que extrapola a própria língua, a exemplo do que fazem Guimarães Rosa e Clarice Lispector de modos tão distintos e geniais.

O que você lê? Quais poetas foram importantes em sua formação?

Dia desses, entendi duas coisas a meu respeito: 1) que, no meu caso, a escrita precede a leitura. Quero dizer com isso que, antes de me tornar uma leitora de obras literárias, antes de amar os livros, eu amava mesmo esse exercício de me lançar na letra. Só depois de começar a escrever é que me interessei pelos livros. 2) Apesar desse caminho, a escrita não teve um caráter tão aleatório quanto possa parecer. É que, se não tinha me agarrado aos livros antes de começar a escrever, havia, por outro lado, uma escuta atenta às canções da música popular brasileira que hoje, compreendo, foi, e continua sendo, a minha maior filiação. Entendo que artistas como Caetano Veloso, Maria Bethânia, Chico Buarque e Novos Baianos precederam qualquer poeta em termos de influência da minha escrita.

Quais poetas você mais leu?

Os poetas que mais li quando, de fato, descobri a poesia nos livros foram Mario Quintana e Paulo Leminski. Ambos imensos. Agora os visito com meu filho. Hoje, depois de uma graduação, um mestrado e de me encaminhar para a conclusão de um doutorado em teoria literária, muitas leituras me atravessam, inclusive leituras de outros campos, como a filosofia e a psicanálise. Clarice Lispector e Alejandra Pizarnik são minhas guias. Em razão do doutorado, estou há quase quatro anos bastante voltada para a obra de Pizarnik, leio e releio seus poemas e cadernos íntimos. Às vezes, preciso de um respiro e então recorro a poetas contemporâneos brasileiros, que produzem coisas lindas e a todo vapor.

O que você não lê? Entenda essa pergunta como preferir.

Adoto o critério de Franz Kafka explicitado na carta de 1904 ao seu amigo Oskar Pollak. Ele diz que “[…] devemos ler apenas os livros que nos ferem, que nos apunhalam. [porque] nós precisamos dos livros que nos afetam como um desastre, que nos tormenta profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser jogado em uma floresta isolada de todos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós.” Já abandonei muitos livros pelo caminho, confesso. Não vou até o fim por questão de honra, nem senso de obrigação, só leio o que me descasca. Minha relação com a literatura é bastante passional, ainda não precisei abrir mão disso.

Alejandra Pizarnik: poeta argentina | Foto: Reprodução

Entre 2008 e 2015 você publicou sua produção poética no blog “Marés e ressacas”. A base do livro “taipografia” advêm desse blog.  Percebe uma necessária mudança de status entre a poesia publicada na internet e a poesia publicada em livro?

Em termos de acessibilidade, sim; de qualidade, não necessariamente. Acho que esse status a que você se refere está ligado a um valor cultural do livro. É feito se o que estivesse na página do livro fosse promovido ao estatuto de lei depois de passar pelo crivo da publicação impressa, ganhasse um selo de qualidade. Bem, sabemos que isso é bastante relativo. Há inúmeros motivos que podem levar um livro a ser publicado ou não, inclusive, motivos alheios à própria literatura. E há editoras e editoras. A martelo casa editorial, editora pela qual publiquei o meu livro, conta com um editor super criterioso e um conselho editorial extremamente qualificado que o ajuda a fazer escolhas alinhadas à proposta da editora. Nesse sentido, acredito que haja uma chancela, sim. Além disso, creio que publicar com uma editora que faça os trabalhos de edição e de divulgação bem feitos ajuda bastante a expandir o alcance de leitores que entram em contato com o texto. Afinal, não é isso o que deseja quem escreve, ser lido?

Clarice Lispector: influência literária | Foto: Reprodução

Além disso, penso que há também essa coisa do livro como um fetiche, o apego a sua materialidade. O livro impresso é um objeto a propósito do texto, mas é mais: projeto gráfico, ilustrações, qualidade do material, enfim, tudo isso nos fisga. A esse respeito, há um poema de Cecília Pavon que expressa muito melhor isso que estou tentando dizer. Intitulado “Paula Peyseré”, faz parte da série de 27 poemas cujos títulos são os nomes de seus amigos:

Que difícil é amar um blog

é como se engraçar com um fantasma

muito mais fácil se engraçar com um livro

você se deita com um livro,

beija, abraça

mas não há amor físico possível

por um blog.

de todo modo,

noto que desenvolvo afeto

por certas blogueiras

como Paula P.

A despeito do blog Marés e ressacas estar desativado, você segue publicando poemas em suas redes sociais. Qual a importância das mídias digitais na divulgação da literatura?

Há muita gente escrevendo e publicando poemas nas redes sociais, nem todo mundo tem a oportunidade de publicar um livro. Mesmo que o mercado editorial venha se expandindo e realizando façanhas incríveis no país, ainda há toda uma questão geopolítica, diria. Os eixos da cultura de maneira geral afinam muito quando passam pela região central do Brasil e não é uma coisa muito simples içá-los. Por outro lado, as redes têm nos propiciado fazer pontes, estabelecer contatos com pessoas de outros estados, dialogar com outros escritores e críticos, ler o que está sendo produzido e dar a conhecer o que fazemos de um jeito informal e efêmero (afinal, as postagens de hoje sequer embrulham o peixe de amanhã), mas que também pode ser interessante em termos de estabelecer essa rede de contatos e de divulgação.

“Não faço muita distinção entre as minhas escritas”
Fernanda Marra: escreve sua poesia e estuda a poesia e os diários da argentina Alejandra Pizarnik, que se matou em 1972, aos 36 anos| Foto: Arquivo pessoal

Você é uma acadêmica. Fez mestrado em Letras e Linguística, na UFG, e está cursando Teoria da Literatura na UnB. Sua formação teórica possui algum peso na concepção de sua poesia? O fato de você conhecer à fundo os mecanismos internos da produção literária ajuda de alguma forma ou, pelo contrário, é algo do qual você procura se desapegar na hora de escrever?

Na verdade, não faço muita distinção entre as minhas escritas. É claro que há exigências da forma acadêmica que são meio incontornáveis. Mesmo assim, busco a menor separação possível entre um trabalho e outro, deixo livre o fluxo para que o conhecimento e a expressão transitem. A poesia é uma forma de pensamento tanto quanto a filosofia e a teoria literária. A literatura e a filosofia são, cada uma a seu modo, modos de desobstrução do pensamento maquínico. Se à primeira cumpre inventar mundos que não existem apontando alternativas não imaginadas, a segunda trabalha com a elaboração e a reelaboração de conceitos. É isso o que a autora que estudo me ensina todos os dias com a leitura de seus poemas e de seus diários, que a literatura é uma saúde e que não há forma definida para o pensamento, porque é o movimento que explica a forma e pensar é mover-se entre os extremos e os limites da língua.

O livro “taipografia” não apresenta o uso de letras maiúsculas. Trata-se de influência de e. e. cummings?

É uma influência de quase todos os autores maravilhosos de poesia contemporânea brasileira que tenho lido, acho que Angélica Freitas teria sido minha precursora. Muito provavelmente isso vem de e.e. cummings, que revolucionou a forma da poesia contemporânea, mas o meu primeiro contato e experimento com esse aspecto formal não se deu com a leitura do autor. Dessa fonte bebi tardia e indiretamente.

Seu objeto de estudo no doutorado é a relação entre a obra poética de Alejandra Pizarnik e seus diários íntimos. Noto que sua poesia possui muito de confessional. Existe aí uma relação? Poesia pode ser um diário? Poesia é sempre um diário?

Existe aí uma relação e essa relação não é senão a que o uso da língua nos impõe. Não é que poesia seja sempre um diário, mas o fato de tomar a língua como suporte faz dessa arte algo diferente das outras que têm como suporte um meio menos contaminado pelos valores da cultura. A língua é a alteridade que constitui nossa singularidade, é a partir desse dispositivo (que é Outro e do outro) que nos tornamos sujeitos. Essa é a compreensão filosófica de linguagem e de literatura que venho construindo a partir de leituras de textos como os de Jacques Derrida, Hélène Cixous, Gilles Deleuze & Félix Guatarri, Jacques Lacan, Clarice Lispector e Alejandra Pizarnik. A meu ver, pensamento filosófico e arte não se dissociam, também não se fundem, mas se espaçam por uma dobra que sustenta, em uma mesma superfície, o dentro e o fora, o sócio e o íntimo, a literatura e a vida.

Umberto Eco dizia que títulos são chaves interpretativas. O poema que dá título ao livro, “taipografia”, é dedicado à Alejandra Pizarnik. É uma dívida espiritual sendo paga? Por que “taipografia”?

O livro é dividido em três partes e em cada uma delas há um poema com esse mesmo título. De fato, são chaves, mas apenas um deles é dedicado à Pizarnik. “taipografia” é uma invenção, um neologismo construído a partir de duas técnicas que me fundam o corpo: a construção e a escrita. Venho de uma família de homens construtores do interior de Goiás. Meu avô sabia empiricamente tudo o que é preciso saber para a construção de uma casa. Nunca estudou engenharia, mas, ao seu modo, transmitiu isso aos filhos. Meu pai, como ele, herdou todo esse saber empírico e seguiu pela vida nesse labor interminável de fazer casas, algo que tomou como um passatempo, uma sina, um ofício. Meu tio e padrinho é engenheiro e tem uma construtora. Minha avó, mineira, morou criança em uma casa de pau-a-pique, onde contraiu a doença de chagas e portou essa doença durante toda sua vida. Entendi recentemente que a escrita é meu modo de carregar essa herança, esse passatempo, esse ofício, essa sina de fazer casa, e que fazer casa com a escrita é fazer um corpo, abrir um espaço de fundação e de troca. Cheguei nisso estudando a poesia de Pizarnik, portanto, acho que é assim que esse título e essa homenagem se explicam. Posso dizer que tenho chagas, que faço casas com as mãos enlameadas e de paredes esburacadas como a que minha avó morou, como as que eu também morei. Não contraio dívidas.

O estilo de muitos autores é definido como sendo prosa poética. Em “taipografia” alguns poemas são poemas prosa. Como chegou a essa dicção poética?

Experimentando mesmo. Poderia pensar que isso vem de Alejandra Pizarnik, pois é verdade que ela tem muitos poemas em prosa, mas esses poemas do meu livro são anteriores ao meu contato com sua poesia. Provavelmente as leituras de Clarice Lispector exerceram essa influência sobre minha escrita, acho que a gente guarda um restinho de tudo o que a gente ama debaixo da unha, mas não foi nada que eu buscasse deliberadamente.

O projeto gráfico de “taipografia” é muito interessante. As ilustrações foram feitas pela artista plástica Fabiana Queiroga. Como foi esse processo de colaboração?

As ilustrações da Fabiana Queiroga são realmente belíssimas e elas são produto da leitura que ela fez dos poemas. Nunca conversamos, não nos conhecemos pessoalmente. Quem mediou todo o processo foi o meu editor, Miguel Jubé. Não poderia estar mais contente com a forma como ela traduziu os poemas para essa outra linguagem de formas e cores, trazendo elementos que são tão caros a minha poesia, como aquelas mulheres portando ovos e a folha da samambaia. Fico feliz e realmente emocionada com esse diálogo que aconteceu entre duas línguas.

Poema de Alejandra Pizarnik

O despertar

Senhor

A gaiola se tornou pássaro

e voou

e meu coração está louco

porque uiva para a morte

e sorri detrás do vento

para meus delírios

 

Que farei com o medo

Que farei com o medo

 

Já não dança a luz em meu sorriso

nem as estações queimam pombas em minhas idéias

Minhas mãos ficaram nuas

e foram aonde a morte

ensina os mortos a viver

 

Senhor

O ar me castiga o ser

Detrás do ar existem monstros

que bebem meu sangue

 

É o desastre

É a hora do vazio não vazio

É o instante de pôr ferrolho nos lábios

ouvir os condenados a gritar

contemplar cada um de meus nomes

enforcados no nada

 

Senhor

Tenho vinte anos

Também meus olhos têm vinte anos

e contudo não dizem nada

 

Senhor

Consumei minha vida num instante

A última inocência explodiu

Agora é o nunca jamais ou simplesmente foi

 

Por que não me suicido diante do espelho

e desapareço para reaparecer no mar

onde um grande barco me esperaria

com as luzes acesas?

 

Por que não extraio minhas veias

e faço com elas uma escada

para fugir ao outro lado da noite?

 

O princípio deu à luz o fim

Tudo continuará igual

Os sorrisos gastos

O interesse interessado

As gesticulações que arremedam o amor

Tudo continuará igual

 

Mas meus braços insistem em abraçar o mundo

Porque ainda não lhes ensinaram

que já é demasiado tarde

 

Senhor

Expulsa os féretros de meu sangue

 

Recordo minha infância

quando eu era uma anciã

As flores morriam em minhas mãos

porque a dança selvagem da alegria lhes destruía o coração

Recordo as negras manhãs de sol

quando era criança

quer dizer ontem

quer dizer faz séculos

 

Senhor

A gaiola se tornou pássaro

e devorou minhas esperanças

 

Senhor

A gaiola se tornou pássaro

Que farei com o medo

Tradução de Virna Teixeira e Carlos Machado