Escritor como personagem (22): Ecos da biblioteca, de Ítalo Campos

25 outubro 2021 às 12h38

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Será que para o leitor, como para todo escritor, é sempre uma surpresa o fato de que o livro tenha uma vida própria, quando quem o lê se desprende dele?
(O que pode acontecer quando aqueles que escrevem literatura se tornam eles mesmos literatura? Literalmente, tudo. Explorar essas múltiplas possibilidades é a proposta dessa série de contos publicados pelo Jornal Opção, com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores-Seção Goiás. Veremos transformados em personagens escritores e escritoras célebres como Clarice Lispector, Albert Camus, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Edgar Allan Poe e muitos outros. Acompanhe a série e espere pela aparição de seu escritor preferido.)

Ecos da biblioteca
Ítalo Campos
Parece que foi ontem, de tão fresquinho e insistente em sua memória. Começou discretamente na hora de dormir. Naquela calma noite, as vozes que ouvia gritavam. Mas há muitos anos essas vozes e imagens se multiplicavam em sua cabeça incessantemente.
Era mais ou menos assim, acontecia de repente: via um monstro que subia do mar. Ele tinha dez chifres e sete cabeças, uma coroa em cada um dos chifres e nomes — que eram blasfêmias — escritos nas cabeças. Convivia com essas vozes com sofreguidão e algum sofrimento. Tudo começava com pequenas frases, frases curtas que, um tempo depois, já formavam uma pequena história. Eram difíceis de identificar, porque se misturavam. Eram vozes agudas, graves, balbuciantes, grossas, desafinadas, insinuantes. Vozes que não calavam. Às vezes alguns personagens chamavam por outros, provavelmente por apelidos, em uma gritaria sem fim: “Narizinho! Taludo! Pedrinho! Demônio!” Ao mesmo tempo acontecia estranha sonoplastia com roncos de animais, cantos de pássaros, todos desconhecidos. Tudo isso foi mudando gradativamente.

Na adolescência as vozes se apresentavam em longos discursos, palavras de ordem ou longas divagações: “não afogarão a verdade num mar de sangue…”; “levanta-te, povo trabalhador!”; “a pé, gente com fome e dor!” Cresceu assim, atormentado por multivozes entrelaçadas, suplicantes de atenção e cuidados, que se impunham e reverberavam no seu pequeno quarto da república de rapazes: “Na velha Naishápúr, na Nínive remota,/ Seja doce ou amargo que a taça ressuma,/ O vinho da Existência escorre gota a gota,/ As folhas da Existência, ah! Tombam uma a uma.” — a voz cantava repetidas vezes em sotaque oriental. Ouvia mensagens: “Nenhum preparado químico pode fazer os homens amarem-se uns aos outros”. “O amor não é um produto do pensamento; também não é cultivável, como a flor que cultivamos em nosso jardim. O amor não pode ser comprado numa drogaria, e o amor é a única coisa que poderá salvar o homem, e não os artifícios das religiões, nem seus ritos, nem todos os exércitos do mundo”. Em verdade não é inteiramente correto dizer que as vozes o perturbavam. Não era assim.
Em determinadas ocasiões, as vozes o acalmavam, o distraíam de alguma situação difícil da realidade. Quem o visse assim, sem responder aos chamados à sua volta, julgaria que ele estava “em outro mundo”, e com razão. Estava povoado pelas vozes inauditas que o acompanhavam e o absorviam em tão grande grau e intensidade que ele ficava em outra órbita, fora da realidade.
Certo dia, em uma roda de amigos, conversando sobre as origens de suas famílias, viu-se surpreso ao ser invadido por vozes que lhe impunham vários nomes, como Aureliano Buendia, José Arcádio Buendia, Úrsula, Remédios, Pilar Ternera, até que ele mesmo já não sabia mais qual era seu nome de família. Quantas palavras, quantos nomes ele ouvira? Estavam ali como uma cachoeira e, mesmo assim, sentia que a palavra lhe faltava: ela não existia? Não era a palavra certa? “Para ser grande, sê inteiro: nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda brilha, porque alta vive”. As frases se impunham e o absorviam. Poucas vezes ele pronunciava esses quase segredos. “A lua toda brilha, porque alta vive”, balbuciou enquanto pagava à moça do caixa na padaria. Ela tomou a frase como um elogio.
Essas vozes o perseguiram por longo tempo, ele não sabia por quê. Numa dada ocasião, passeando por Buenos Aires, entre o burburinho da praça de Santelmo, admirando os quadros, telas raras, peças antigas, luminárias e tantos outros objetos representativos de uma burguesia e de uma Argentina que já não existiam mais, via miséria e violência. Quase chorou. Ocorreu-lhe que a maldade é a vingança do homem contra a sociedade pelas restrições que ela lhe impõe. É o resultado do conflito entre nossas pulsões e nossa cultura. Ficou pensativo.
Em casa as vozes adquiridas se confundiam com sua própria voz e com as de sua família. Essas distinguiam-se apenas pelo sotaque familiar e por diferentes tonalidades. A do pai, em tom baixo, um breve barítono. A da mãe, grave, bravia, ameaçadora e repetitiva. Soprano. Irmãos e parentes emitiam agudos que muitas vezes lhe incomodavam. Nessas ocasiões cobria, com as mãos, os ouvidos, num gesto que era tomado como uma de suas esquisitices. Outra estranheza era o ritual de inventar nomes que o ajudavam a diminuir a insônia.

Bem tardiamente descobriu que podia partilhar as vozes com algumas poucas pessoas que frequentavam os mesmos ambientes — teatro, cinema, boteco. Aquelas vozes algumas vezes queriam dominar o seu ser, que resistia com uma estranha força, a qual separava sua própria personalidade dessas personagens inacabadas que ele carregava. Assustou-se quando Gregor Samsa despertou, certa manhã, de um sonho agitado e viu que se transformara, durante o sono, numa espécie monstruosa de inseto. As vozes, nessas ocasiões, calavam-se momentaneamente. Às vezes imaginava que as vozes poderiam se transformar em seus pensamentos, e isso seria legítimo, pois faziam parte de seu íntimo e intransferível pensar.
Certa feita, extremamente cansado — tanto de procurar o endereço onde marcara consulta médica, quanto das vozes que se aguçavam na sua cabeça —, resolveu estacionar na primeira sombra encontrada. Um oásis, pensou. A tarde estava ensolarada e abafada. Descansava no carro, que permanecia ligado para ter o ar-condicionado funcionando. Eis que percebeu onde estava: bem em frente a uma biblioteca pública. Precipitou-lhe uma grande vontade de conhecer aquele espaço. Certamente encontraria um ambiente calmo e ameno, em contraponto ao infernal trânsito que havia enfrentado. Não esperou terminar seu pensamento: desligou o carro e caminhou para a biblioteca. Ao adentrar, foi invadido por um ar fresco e sentiu algo inexplicável, um misto de alívio e satisfação.
Na recepção foi orientado a se dirigir ao maior espaço daquela casa, que tinha uma atmosfera de doce quietude. Seu sentimento de satisfação era enorme, acertara em cheio ao decidir entrar. Caminhou em direção às estantes. No amplo espaço pessoas ocupavam algumas mesas. Jovens estudantes uniformizados, mediante pilhas de livros, pareciam fazer pesquisas.
Ele se dirigiu às estantes mais próximas, sem autor ou título pré-determinado. Olhou aquelas estantes por alguns minutos, admirou o acervo. Pegou o livro que lhe pareceu o mais atraente. Começou a ler ali mesmo, de pé, como se quisesse apenas um contato rápido — ler a orelha, a contracapa. Mas, em vez das primeiras páginas, abriu o meio do livro e leu toda uma página, pausadamente. Logo sentiu mudar todo o seu corpo. Seus pés não pareciam tocar o chão, o livro não tinha peso, parecia segurar uma folha de seda. Dirigiu-se a uma das mesas e continuou sua leitura. Então se deu conta de que conhecia aquelas palavras, aquela história; de que já tocara naquele texto. Continuou por duas ou três páginas. Sua memória se avivava cada vez mais fortemente. Já lera aquele livro: dele eram aquelas palavras que, acossando-o incessantemente, permaneceram em sua cabeça: “Sê como torre firme, cujo cimo não desaba ao soprar dos ventos. Pois é certo que, entregando-te ao mesmo tempo a vários pensamentos, perdes em firmeza e teu ideal afastas, dado ser próprio de um pensamento enfraquecer a força do que lhe é anterior”.
De início, angustiou-se; à medida que lia, porém, sua cabeça se aliviava, como se descansasse, em uma sensação de esvaziamento. As mesmas palavras que ecoavam em sua cabeça estavam ali naquele livro e iam desaparecendo à proporção que a leitura progredia. Absorto, continuava a ler sem se dar conta do que se passava a sua volta e, sobretudo, do tempo. Eis que foi delicadamente avisado pela bibliotecária de que já se passara meia hora além do expediente. Eram dez e meia da noite.
Ao passar pelas estantes, ao sair, deu-se conta de que o livro aleatoriamente escolhido, além de outros expostos, era um cuja leitura havia abandonado. Todos ali gritavam e esperavam por ele: a Bíblia Sagrada; a biblioteca infantil da livraria Quaresma; Monteiro Lobato; M. Gorki; O. Kayyann; J. Krishnamurt; G. G. Marques; Fernando Pessoa; J. L. Borges; W. Benjamim; S. Freud; Dostoiévski; Kafka; D. Alighieri; Nietzsche, J. G. Rosa. Efusivamente agradeceu à pessoa que o recebera naquela tarde e saiu em direção ao carro. Desde criança, agradável sensação como essa jamais experimentara ao fim de uma leitura. Estava mais leve a sua cabeça e exultante o seu coração.
Será que para o leitor, como para todo escritor, é sempre uma surpresa o fato de que o livro tenha uma vida própria, quando quem o lê se desprende dele? É como se parte de um inseto se destacasse e tomasse um caminho próprio. O livro busca seus leitores, inflama vidas, alegra, assusta, engendra novas obras: vive como um ser dotado de espírito e alma. Nesse exato momento ele conclui que todo mundo é louco. O senhor, eu, todos… Viver é muito perigoso. As pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
No outro dia e em todos os dias seguintes, seu carro podia ser visto estacionado, das 18 às 22 horas, em frente à biblioteca.