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Dizes ser um fingidor, mas não sabe fingir, pois, fingindo embora, trazes à tona a verdade

(O que pode acontecer quando aqueles que escrevem literatura se tornam eles mesmos literatura? Literalmente, tudo. Explorar essas múltiplas possibilidades é a proposta dessa série de contos publicados pelo Jornal Opção, com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores-Seção Goiás. Veremos transformados em personagens escritores e escritoras célebres como Clarice Lispector, Albert Camus, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Edgar Allan Poe e muitos outros. Acompanhe a série e espere pela aparição de seu escritor preferido.

Fernando Pessoa — Nas arcadas do Martinho

Itaney F. Campos  

Um ventinho frio, oriundo do caudaloso Rio Tejo, perambulava pela Praça do Comércio, obrigando os transeuntes a abotoarem até o pescoço os seus agasalhos e sobretudos. O inverno se anunciava nessa aragem impetuosa. As primeiras sombras se estendiam pelos arredores da cidade de Lisboa. Pelo passeio, segurando o chapéu pela aba, seguia apressadamente o poeta Fernando Pessoa, em direção à bodega do Martinho. Habitué do estabelecimento, onde tinha cadeira cativa, o escritor fechava o dia com uma taça de vinho da região do Douro, cujo retrogosto ele quebrava com uma boa dobrada lisboeta. Ao adentrar o restaurante, Pessoa não pode deixar de franzir o senho ao ver que, encostado ao longo balcão, junto ao balaústre, se achava o seu heterônimo Alberto Caeiro, o alter ego de quem ele menos gostava. Que maçada, pensou, esse gajo está sempre a me aborrecer! Que pretenderá, desta vez? Já não se pode em sossego degustar a dádiva de um tinto seco do Doiro…

Bem, vamos resolver logo a parada, encarar a fera de frente; que os deuses me propiciem que ele logo se bata em retirada. A ele lhe cansava o parceiro, um campônio, um poeta rústico, que rejeitava as questões metafísicas e discussões filosóficas. Um homem rude, avaliou; que não me escutem ele e Deus. Não é mau pensamento, é a verdade. Afinal, é um sujeito que praticamente não teve educação formal. E me aparece logo hoje que, segundo a previsão astrológica, não seria um bom dia para encontros, sejam ou não com amigos. E foi em direção ao seu colega, estendendo-lhe a mão: “Salve, Alberto, folgo ao ver-te, há pouco pensava em ti! Que bons ventos cá te trazem?” Caeiro, com o braço estendido e a mão aberta, retrucou: Boa tarde, Fernando! Não percebeste por que estavas entregues à tua metafísica, mas me abalei para este aprazível recanto na mesma aragem que te impulsionou pelo largo, em direção a estes arcos. Creio que não me viste, pois não é do teu feitio menosprezar os amigos, mas pensei cá comigo, “será que o Pessoa anda nas nuvens, fraquejou os sentidos, que já não percebe quem o acompanha?”. E riu-se da expressão atarantada do escritor.

Um homem simplório, eis o que temos, refletiu o poeta, e verbalizou: Acompanhas-me em um cálice do bom vinho do Douro, meu amigo? Com a franqueza peculiar, o outro observou: Ó, Fernando, já não me sabes um abstêmio convicto? Se me vires a beber, saiba que é involuntário. Ou porque a isso me obrigam! Mas senta-te, homem! Refestelemo-nos com uma boa prosa! Resignado, sentou-se o escritor, sinalizando ao proprietário do estabelecimento que lhe trouxesse a bebida. Preparou-se para quedar-se em silêncio, sabido que o interlocutor era um contumaz palrador. Cultor do monólogo, ao que, à boca pequena, diziam. Sem perda de tempo, fixando o olhar no rosto do poeta, Caeiro começou o seu discurso: Fernando, tu hás de convir: tua revista Íbis foi à bancarrota porque careces do tino da objetividade.

Dizes ser um fingidor, mas não sabe fingir, pois, fingindo embora, trazes à tona a verdade. Não pode ser assim, meu amigo. No comércio de qualquer ramo, hás de fingir, sem fugir do fingimento. O que sinto, eu não revelo. E nem sempre sou igual no que digo. E as vezes mudo, mas não mudo muito. Pareço as vezes não concordar comigo, mas sou sempre eu. E assente sobre os mesmos pés. Tu não, tu carregas os portos, as paisagens, os sonhos. Tens que cair na real: o sentido oculto das coisas é elas não terem sentido oculto nenhum. Na verdade, as coisas não tem significação, tem existência. Compreendeu? Por exemplo, quando vejo o luar através dos altos ramos, para mim não é mais do que o luar através dos altos ramos.

Fernando Pessoa por Almada Negreiros | Foto: Reprodução

Pessoa, constatando que o seu silêncio não conseguia conter a verborragia do interlocutor, tentou uma observação: Mas todo estado de alma é uma paisagem, uma tristeza é um lago morto, uma alegria um dia de sol em nosso espírito…temos consciência de duas paisagens. Antes que concluísse, Caeiro o interrompeu: Eu não tenho filosofia, tenho sentidos. E não há metafísica maior do que não pensar. Outra cousa: quem ama, nunca sabe o que ama, nem porque ama e nem o que é amar, na verdade, pouco me importa!

Neste ponto, o Poeta, que vinha assentindo a quase tudo com a cabeça, perguntou: Pouco importa o que? O outro respondeu: Não sei, só sei que pouco me importa! Eu não sei o que penso. E abaixando o tom da voz, disse gravemente ao amigo: Meu caro, não acredito que eu exista por detrás de mim! Quero é desembrulhar-me e ser eu. Você poderia me perguntar o que penso eu do mundo. Eu respondo: Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Quem pensa está doente dos olhos. Querer compreender demais é um erro…

Pessoa objetou, perplexo: Como assim, um erro? Foi ignorado: Se você diz que se aproxima das estrelas, está cometendo um erro. O distante não é próximo! Aproximá-lo é enganar-se! É como as bolhas na água que se formam à flor dos ribeiros. Não tem sentido nenhum, salvo serem bolhas de água…Nada tiramos e nada pomos pelo mundo afora; passamos e esquecemos!

O poeta de Cancioneiro já se quedava perplexo, a sentir a alma perdida e alheia. O amigo era uma torrente de palavras e argumentos sensíveis mas incongruentes. Observou o grande Tejo a fluir em silêncio e refletiu: O que é ser-rio, e correr? O que é está-lo eu a ver? E me esquece o olhar olhando, isto me bate de encontro ao devaneando. Sentiu, de súbito, que o Caeiro o estava influenciando, a comandar o seu estado de alma. Tomou posse de si e voltou a atenção ao que o companheiro de mesa dizia. Por um átimo pensou em pedir a conta e despedir-se, livrando-se daquela conversa maçante, mas lembrou-se de que, aonde quer que fosse, o falante Alberto o seguiria, a abusar de sua atenção e seus ouvidos, num parasitismo sem remédio. Foi quando percebeu o que o bucólico asseverava, com ares de sabedoria: não há Natureza, Natureza não existe. Há montes, vales, planícies; há árvores, flores, ervas; rios e pedras, mas não há um todo a que isso pertença; a Natureza é partes, sem um todo.

É a verdade que só eu, porque não a fui achar, achei. Nesse momento, estimulado pelas várias taças de vinho, seguro de que o sósia perderá o siso, Fernando Pessoa explodiu: Alberto, não me digas mais nada! Arre, merda! Passa de mim, passa da minha vista! Perde-te, segue o teu caminho! Não me pegue no braço! Já disse que não gosto que me peguem no braço! Quero estar sozinho! Alberto, queres saber a que te exorto? Se te queres matar, ah, aproveita! Se ousares, ousa! Que amigos que tenho tido! Deixem-me em paz! Vá, Alberto, pentear macacos, alma de sabujo! És como um cu, ainda que limpo, é sempre sujo! Passa-te, segue o teu caminho! Arre, merda, quero estar sozinho!

E assim vituperando, deixou o restaurante às pressas, enquanto o outro o seguia, como uma sombra, a repetir, te acalma, Fernando, te acalma, homem! Deixa que eu te acompanhe. Veja, eu estou contente e não estou contente; o que custa conceber que uma coisa é uma coisa, e não outra coisa mais adiante? Não te aborreças, homem…depois do nada é o nada…uma ligada de vento invadiu o ambiente, ao abrir-se da porta; a noite já envolvera a praça e seu monumento central e engoliu a dupla de escritores…

Itaney F. Campos é escritor.