Escritor como personagem (10): Shakespeare — A fala do fantasma, de Nelson Moraes

07 outubro 2021 às 12h17

COMPARTILHAR
– Você cochichou aí “É sempre ousada a loucura dos grandes não vigiada”. Eu ouvi!
(O que pode acontecer quando aqueles que escrevem literatura se tornam eles mesmos literatura? Literalmente, tudo. Explorar essas múltiplas possibilidades é a proposta dessa série de contos publicados pelo Jornal Opção, com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, presidente da União Brasileira de Escritores-Seção Goiás. Veremos transformados em personagens escritores e escritoras célebres como Clarice Lispector, Albert Camus, Guimarães Rosa, Machado de Assis, Edgar Allan Poe e muitos outros. Acompanhe a série e espere pela aparição de seu escritor preferido.)
Shakespeare — A fala do fantasma
Nelson Moraes
Bernardo e Marcelo, vigias do castelo, não se conformam com o fato do recém-chegado Horácio não acreditar na aparição que ambos alegam ter visto, nas noites anteriores.
– Ontem mesmo – insiste Bernardo –, quando o sino bateu uma hora da manhã, o fantasma veio e…
– Sei – desdenha Horácio. – Vamos nos sentar, então, para que me distraiam com o relato de sua fantasia.
– Quieto! – diz Marcelo, lívido. – Olha lá! Está vindo de novo!
Horácio se vira preguiçosamente, para que uma súbita e gelada palidez lhe tome por inteiro.
– É a mesma aparência do falecido rei – consegue dizer Bernardo.
– Você, que não acreditou, Horácio… – instiga Marcelo. – Vá, fale com ele!
– Eu… Eu… – geme Horácio, aterrorizado.
– Fale com ele, Horácio! – insiste Marcelo.
– Quem… quem és tu – Horácio finalmente consegue balbuciar, refinando respeitosamente o pronome de tratamento –, que nos aparece a essa hora da noite, com o semblante do falecido rei da Dinamarca?
– Ah, Horácio – a aparição diz, depois de uma calculada pausa – Há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe tua filosofia.
– Não, não! – é o que todos ouvem.
E o autor sobe ao palco.
– Não! Mil vezes não – ele reforça, e dirige-se ao ator que faz o fantasma: – Dermott, quantas vezes eu já disse que essa fala não é sua?!?
– Ah, vamos lá, Bill – o ator diz, tirando um pouco do pancake exageradamente branco que lhe cobre a testa. – A fala é um achado.
– Mas não é sua, com mil demônios! – o autor chega a bater o pé no chão. – Restrinja-se ao seu papel! Você sabe muito bem o que fazer!
– Restringir-me ao meu papel? E por que as melhores falas vão para o jovem príncipe?
– Isso aqui não é um concurso de falas – e o autor sacode o calhamaço com os textos. – É uma peça onde cada ator diz o que lhe cabe!
– Ah, é? – o velho ator leva as mãos à cintura, fazendo ranger a desgastada armadura cenográfica. – E quem foi que arrancou exaltados elogios do público, desdobrando-se em dois papéis em A Comédia dos Erros? Hein?
– Dermott – o autor tenta se acalmar e respira fundo. – São tempos passados. Isso aqui não a Comédia dos Erros. Você só tem de se ater ao seu papel, e não roubar cenas. Vamos lá de novo. Todos de volta às suas marcações: a estreia é amanhã, não percamos tempo.

O autor desce do palco, enquanto ouve o ator cochichar sozinho, mas de modo a ser ouvido: “A própria rainha me cumprimentou por A Comédia dos Erros…”.
– Sim – impacienta-se o autor – e este ensaio está se revelando uma tragédia de erros! Podemos continuar?
Um silêncio constrangido impera. O autor dirige-se ao ator que faz Horácio:
– Bruce, retome sua última fala.
– Quem… quem és tu – Horácio balbucia –, que ousas nos aparecer a essa hora da noite, com o semblante do falecido rei da Dinamarca?
– Ele nada diz – Marcelo fala.
– O resto é silêncio – a aparição acaba dizendo.
– Santo Deus, Dermott! – o autor esbraveja, agora sem dar-se o trabalho de subir ao palco. – Que diabos você…?
– Ah, vá, Bill – o ator ergue as mãos. – A fala é perfeita para o momento!
– Mas não é sua! Quantas malditas vezes eu tenho que dizer que essa fala vai no final da peça, e que, com todos os demônios, ela-não-é-sua?!?
O velho ator vai até a beira do palco:
– Sim, claro, Bill. Você teve em mim o Ricardo III perfeito, há dez anos, mas hoje prefere presentear o tal Garbage com as melhores falas
– É porque ele é jovem e faz o príncipe, Dermott. Você faz o fantasma! É complicado de entender?
– E é só por isso que você deu os melhores trechos da peça para ele, Bill…?
O autor se levanta e vai até perto do velho ator. Baixa o tom de voz para perguntar:
– O que você quer dizer com isso?
– Nada, nada – e o ator retorna à marcação de antes.
O autor dá um longo suspiro, transforma o calhamaço nas mãos em um longo tubo de papel, parece contar até dez e instrui:
– Continuemos.
– Ele nada diz – Marcelo fala.
– Fala! – grita Horácio. – Eu te ordeno! Fala!
Ouve-se um sussurro, quase um chiado. Algo entre os dentes, praticamente inaudível, vindo do fantasma.
– Ei – rosna o autor. – Eu ouvi algo?
– Não falei nada – desconversa o velho ator.
– Falou, sim – o autor diz. – Você cochichou aí “É sempre ousada a loucura dos grandes não vigiada”. Eu ouvi!
– Você precisa conter esses seus devaneios e fantasias, Bill – provoca o ator, ensaiando um riso.
– Dermott – e aqui o autor olha para um lado, para outro, reabre o tubo de papel, parece escolher bem as palavras e vai desfiando o discurso: – Você foi um grande ator. Ainda é, quando não bebe. Ou quando não esquece as falas. Acontece que o autor e o diretor aqui sou eu. Você viu o Bruce, o Larry ou Phil aí trocando as falas de Horácio, Marcelo ou Bernardo? Então. O que você tem a fazer é simples. Atenha-se à merda do seu papel e às suas malditas falas, e sua parte está feita! Deixe as falas do príncipe para o príncipe! Estou pedindo muito?!?
O velho ator não se manifesta.
– Ah, agora o silêncio – o autor provoca, sarcástico.
– Roubando a fala do príncipe, Bill? – o ator graceja.
Os quatro atores percebem claramente a calva do autor se avermelhando, como se fosse uma chaleira que passou do ponto no fogão. Das orelhas parece inclusive jorrar o vapor estrepitoso da fervura, e nesse momento ele atira os papéis no chão. Em seguida os recolhe, pega o cálamo embebido em nanquim e começa a furiosamente fazer riscos no texto.
– Pronto – ele fala, colérico, e a cada risco parece se acalmar um pouco. – Acabo de cortar todas, eu disse todas, as suas falas nesta cena. Você vai entrar nela mudo e sair calado. Era isso o que você queria? Pois então. A partir de agora, na peça, você só fala quando aparecer para o príncipe, lá na cena V! Está satisfeito?
– Bem – o velho ator diz, olhando o pancake branco nas mãos, as quais tinha voltado a passar na testa. – Mais satisfeito ainda vai ficar seu jovem príncipe. Que provavelmente não vai economizar nos… agradecimentos, eu suponho.
Os demais três atores se entreolham e abaixam as cabeças.
– Dermott – o autor fala, escandindo cada sílaba e agora com a voz bem baixa, como se não quisesse mais desgastar as cordas vocais. – A estreia é amanhã e eu não tenho tempo de substituir você. Mas se você insistir, eu corto suas falas na cena V também. É isso o que você quer? Ser um personagem inteiramente mudo, a peça inteira?
O velho ator dá de ombros, ostenta uma afetada concordância e volta à sua marcação, não sem antes deixar escapar o comentário:
– Ser ou não ser o queridinho do autor, eis a questão.
Silêncio.
Poucos sabem, mas Nicholas Rowe, que publicou o primeiro folio de William Shakespeare, em 1611, registrou que na estreia da peça, encenada pela Lord Chamberlain’s Men, o próprio Shakespeare foi quem interpretou o fantasma do rei, na Tragédia de Hamlet, o príncipe da Dinamarca.