Escrita de H. Martins é marcada pelo domínio de recursos narrativos: do flashback ao fluxo de consciência

04 outubro 2025 às 21h00

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Gilberto de Amorim
Esta resenha nasceu de uma conversa telefônica com Hércules. Na ocasião, ouvi seu desânimo diante do estreito funil da literatura, com quase nenhuma alternativa além dos concursos literários — marcados por vieses ideológicos passageiros e panelinhas de autores incensados — como únicas oportunidades para um escritor obter reconhecimento correspondente.
H. Martins confidenciou estar inclinado a encerrar a carreira de ficcionista, optando, no máximo, por guardar seus manuscritos na gaveta. Diante do tom grave da conversa, resolvi revisitá-lo em minha memória de leitor atento de seus textos. Escolhi quatro livros, todos lançados pela editora paulista Litteralux.
A literatura de H. Martins — pseudônimo de Hércules Ribeiro Martins — destaca-se já de início pelo refinamento. Sua escrita é marcada por pleno domínio de recursos narrativos: do flashback ao fluxo de consciência, da alternância entre diálogo coloquial e linguagem rebuscada.
A prosa do escritor exige do leitor sensibilidade, diante de um estilo singular, híbrido e sofisticado, características já notadas por críticos de sua obra.
Explorador de limites, H. Martins nos apresenta em suas obras um mergulho complexo na alma humana, com destaque especial para personagens femininas e homens idosos.
Mesmo quando narra enredos de protagonistas masculinos, a delicadeza feminina permanece no centro de sua atenção: é notável como o autor, sendo homem, consegue captar determinadas sutilezas da alma feminina, a ponto de desenvolver tão bem suas personagens mulheres, como bem destacou a escritora Lúcia Facco.
As tramas sempre trazem uma sensualidade elegante, que nunca constrange — ao contrário, instiga o leitor a imaginar a beleza narrada.
H. Martins transita ora pelo universo cerrado goiano-tocantinense, nomeando apenas ruas ou, por vezes, adotando nomes coloniais para as cidades, criando seu microcosmo, talvez inspirado em Macondo ou Yoknapatawpha; ora por paisagens de cidades como Paris, Los Angeles, Havana, Cuzco e Londres.
1
Crônicas das Viúvas Fogosas da Rua Direita

Começo, então, por “Crônica das Viúvas Fogosas da Rua Direita”.
Neste livro, H. Martins apresenta um mosaico de mulheres que reinventam o luto e a vida: Ava (30 anos), Isabel (47), Cristina (67) e Theodolina (87) formam um retrato matriarcal tocante, alternando entre força e contradição.
Ava retorna a Brasília após a perda de Armando, e transforma a dor em memória marcada por linguagem precisa e pontuada por símbolos — uma gota de sangue no criado-mudo, os óculos escuros do falecido a lhe cobrir os olhos com afeto.
Os detalhes compõem uma narrativa rica: a liga Mercur — aquela de prender dinheiro — que prende telegramas de consternações, a jovem viúva enxergando o mundo em preto e branco a partir de seu luto — que metáfora mágica —, uma casa sem paredes em desafio às convenções.
As personagens, cultas e fascinantes, transitam entre vulnerabilidade e potência, mostrando que a liberdade pode brotar mesmo do sofrimento da perda. Assim, H. Martins transforma a tal Rua Direita de Meia Ponte (Pirenópolis?) em representação de um espaço onde tradição e transgressão dialogam, equilibrando lirismo, humor e um olhar humano sobre a superação.
2
O Pródigo e o Cisne

Em “O Pródigo e o Cisne”, H. Martins explora a beleza da decadência humana com lirismo e criatividade, sob influência já comentada de mestres como Faulkner, Camus e Márquez.
Narrando o retorno de Judas Tadeu ao lar materno após anos de vício, acompanhamos sua convivência com Dalila, mãe de “olhos azuis que não envelhecem”; a convivência com Ângela, a prima diarista que o ama e o toca sem o desconforto da reciprocidade; a estagiária sedutora que o resgata de sua misantropia, num verdadeiro ensaio à beleza e à sensualidade; e o convívio ambíguo e quase incestuoso com a cozinheira francesa.
Cada relação, permeada de solidão e desejo, ganha vida por meio dos sentidos: cheiros, sabores, texturas.
A epígrafe com texto de Mario Quintana prenuncia o destino do protagonista: um náufrago voluntário, boiando entre pequenas tragédias cotidianas.
O estilo de Martins consegue equilibrar a crueza de Rubem Fonseca com a delicadeza de Lygia Fagundes Telles, resultando em um romance que exige do leitor envolvimento total. A obra é feita de ideias belas, imagens sutis, frases primorosas e um fim fabuloso não apenas no desfecho, mas também na construção frasal propriamente dita, como observa a escritora Karla Lima.
3
Meninas Comportadas, Modos Atrevidos

“Meninas Comportadas, Modos Atrevidos” alia linguagem culta à crítica social.
H. Martins foca a fictícia Felicidade do Norte que, modéstia à parte, emprestei o nome, transpondo para a literatura as contradições do Brasil profundo.
O prosador revela, com sensibilidade e imagens originais, o quotidiano de normalistas levadas do suposto pedestal de segurança social por um simples “mau passo”.
Dolores, marcada por calúnias e o peso do julgamento provincial, ganha voz em uma prosa permeada de ironia, expondo hipocrisias e revelando novas formas de resistência feminina.
4
Meu Amado Coronel

Por fim, destaco “Meu Amado Coronel”, livro caro a este leitor.
Nessa narrativa, lucidez, desamparo e humor se entrelaçam.
O Coronel, símbolo de várias masculinidades tardias, já começa desafiando o autor no protagonismo narrativo, exigindo independência de voz.
Entre confissões e observações de vida, o personagem expõe rituais de uma liberdade conquistada tardiamente, como a mudança para um flat minimalista.
O tom não é de glória, mas de tragicomédia: mensagens secas aos filhos, um cachorro indiferente, o drama de reorganizar os afetos e as posses.
As situações, narradas com ironia, revelam um personagem que encara, com pudor e sagacidade, a velhice, a sexualidade e a solidão, sem, porém, cair no clichê.
O erotismo surge permeado de dúvidas — com personagens femininas simbólicas —, refletindo a decência de quem nunca se encaixou em padrões convencionais de masculinidade. Ao rememorar o passado — sem glamour —, o Coronel reformula tradições, entregando ao leitor um painel de maturidade lúcida, tocado por humor melancólico e pequenas epifanias.
Em primeira pessoa, H. Martins prova, como observa Kyanja Lee, ser um narrador lúcido, sagaz, dotado de uma percepção incomum da psique humana e de suas motivações, ainda que mortificado diante do incognoscível.
A obra de H. Martins reafirma-se como uma síntese inesgotável de refinamento formal, crítica social e densidade psicológica.
Seu universo literário combina as melhores tradições da literatura, com a ruptura, lirismo e ironia, numa celebração da linguagem e da complexidade humana, destacando-se, a meu ver, como um dos grandes nomes da literatura contemporânea brasileira — que não deve relegar às gavetas os seus próximos inventos ficcionais.
Gilberto de Amorim é poeta e escritor paulistano, com alma baiana. É autor dos livros “Aviso aos Interessados” e “Por Assim Dizer” (Editora Litteralux).