Escolhendo a simplicidade, ‘O Filme Da Escritora’ é o melhor do cinema de 2022

05 janeiro 2023 às 15h19

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Em meio a filmes grandiosos e ambiciosos de 2022, como Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo (Everything Everywhere All at Once, Daniel Scheinert, Daniel Kwan) que se infla de efeitos, sons, referências e linhas temporais, mas se esvazia em suas reflexões e reconciliações, ou a reciclagem das acrobacias de Tom Cruise em Top Gun: Maverick (Joseph Kosinski), e a grandiloquência em todos os sentidos de Avatar: O Caminho da Água (Avatar: The Way of Water, James Cameron), alguns nomes presentes na 46ª Mostra de São Paulo mostraram que há um cinema mais simples sendo feito em outros lugares que não os Estados Unidos (o que não indica a qualidade dos filmes, são casos e casos, e sempre foi assim).
É o francês Com Amor e Fúria (Avec amour et acharnement, Claire Denis), onde a câmera tem uma proximidade à tensão dos corpos que permite ao cinema fluir singelamente pelos quatro cantos da imagem, o canadense Un été comme ça (Denis Côté), que valoriza os caminhos e não precisa de grandes atos para se realizar, visto que às vezes não mudar já faz diferença, e o agora badalado Aftersun (Charlotte Wells), mas nenhum desses se aproxima da simplicidade técnica do sul-coreano O Filme da Escritora (So-seol-ga-ui Yeong-hwa), de Hong Sang-Soo.
Nele, uma escritora faz uma longa viagem para visitar uma livraria, administrada por uma amiga mais jovem com quem perdeu contato. Ela, então, sobe uma torre sozinha e encontra um diretor de cinema e sua esposa. Eles passeiam em um parque e conhecem uma atriz, a quem a escritora tenta convencer a fazer um filme com ela. Tudo (ou quase tudo) em preto e branco, com a menor quantidade possível de cortes durante as cenas, é puramente imagem e palavra. O que não é novidade na filmografia do diretor, que bebe da simetria de Yasujiro Ozu, da naturalidade de Éric Rohmer e da estaticidade de StraubHuillet, características que podem sim afastar o público (durante a sessão o casal ao lado dormiu, umas três pessoas abandonaram, um amigo que encontrei no final disse que foi torturante, diferentemente da moça de trás que riu o tempo inteiro). Entendo todos eles, são longos os diálogos em planos abertos que percorrem com delicadeza as paisagens externas e externas, mas que atingem um nível que permitem, enquanto se assiste, pensar no poder da conversa, compreender o afeto que surge nos acasos dos encontros, perguntar o porquê de ainda fazer cinema, sendo que tudo já foi por ele contado, e o que atinge o grande público está longe da linguagem de Sang-soo.
Aqui principalmente por causa da cena em que as personagens tentam se comunicar por linguagens de sinais, como se tudo já não estivesse primário o bastante, e que deve estar entre os melhores momentos de Hong Sang-soo, como uma síntese e conquista dessa simplificação, mas carregada de uma profundidade singular, porque entre tentativas e acertos, é bonito ver a comunicação existindo (importante levar em consideração que é um filme pós-pandêmico). Até pensei que algum dia o diretor faria um longa que seria um making off, como se nenhum filme pudesse ser mais real do que a sua própria confecção. Então Sang-soo voltaria ao Godard, por exemplo, antes de chegar aos Lumière e fazer uma câmera inteiramente parada e surda?

O próprio mostrou que não, de fato colocou uma espécie de making off, mas agora colorizado, com trilha sonora, em que Kim Min-hee, que geralmente é sua câmera a observar as passagens mundanas, olhando para o dispositivo, como se fosse o próprio diretor a olhar com carinho para seu público. O momento mais falso do filme, então, mas que tem a mesma potência daquele dos sinais, daqueles na praia sozinha (Na Praia à Noite Sozinha, 2017) ou no hotel às margens do rio (O Hotel às Margens do Rio, 2018). Sang-soo prova que não precisa inventar muito, nem mesmo se reinventar, para estar entre os melhores cineastas da atualidade. O que fica, depois da experiência de passear pelo filme, é a felicidade de ver um autor atingir o seu melhor, fazendo o mesmo que fez nas outras produções dele que vi, e não precisar de mais nada pra isso, nem pra voltar aos Lumière em simplicidade ou ao Godard em metalinguagem.
Porque cinema é cinema desde sua origem, mudo, incolor, parado, (e são bem vindas as revoluções e inovações tecnológicas), mas que já tocava o intangível. E em 2022, mesmo com os projetos ambiciosos, ou apesar deles, na insignificante opinião de quem escreve, o melhor cinema do ano, ou, no mínimo, da mostra de São Paulo, é o que menos grita “olhem para mim, sou grandioso”, é apenas mais um filme de Hong Sang-soo, é O Filme da Escritora.