Em ‘Como escrever histórias’, Raoni Marqs apresenta a jornada do herói como modelo flexível

02 agosto 2025 às 21h01

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Salatiel Soares Correia*
Como escrever histórias é um guia prático de escrita criativa escrito por Raoni Marqs, um autor brasileiro conhecido por seu trabalho com quadrinhos e storytelling. Publicado originalmente de forma independente em 2016, o livro ganhou uma nova edição pela Editora Seguinte em 2025, alcançando um público mais amplo. A premissa da obra é clara desde o início: este é um “guia definitivo para vencer a página em branco”, mostrando que qualquer pessoa é capaz de criar uma boa história. Logo nas primeiras páginas, Marqs cativa o leitor com metáforas criativas – por exemplo, ele compara o ato de contar uma história a espiar por um buraco de fechadura, onde se vê apenas uma parte da cena. Essa comparação instiga a curiosidade e exemplifica a abordagem lúdica do livro, preparando o terreno para as diversas dicas e ensinamentos que virão. Com uma linguagem comunicativa e repleta de ilustrações, o autor atinge o objetivo a que se propõe: apresentar ao leitor a forma adequada (e divertida) de se escrever uma história.
Estrutura e Conteúdo do Livro
O livro é dividido em partes bem definidas, cobrindo do conceito inicial até a estrutura final de uma narrativa. Na Parte I, Marqs aborda os fundamentos da criação de histórias, discutindo tópicos essenciais como conceito, gênero, trama, logline, tema e construção de personagens (especialmente o herói e o vilão). Essa primeira seção enfatiza a importância de definir claramente a ideia central da história e encontrar o gênero apropriado para ela, antes de avançar para os próximos passos. Por exemplo, o autor sugere pensar na história como uma única imagem ou ideia-chave que a define – o conceito – e a resume em poucas palavras, tal como “várias pessoas presas numa nave com um monstro assassino” poderia ser o conceito de Alien, ou “robôs que se transformam em carros” o de Transformers. A partir desse conceito inicial, o livro orienta o leitor a escolher o gênero (fantasia, romance, ficção científica etc.) que melhor se encaixa na sua ideia, e a conhecer as convenções desse gênero para atender às expectativas do público. Em seguida, Marqs explora a trama e a logline – ensinando a desenvolver a sequência de eventos principais da história e a condensá-la em uma frase de efeito – bem como o tema (a mensagem ou questionamento central da narrativa). A criação de personagens também recebe destaque: o autor discorre sobre como construir um protagonista cativante (o “herói”) e um antagonista à altura (o “vilão”), oferecendo dicas para torná-los convincentes e funcionalmente alinhados ao enredo.
Na Parte II, Como escrever histórias foca na estrutura narrativa propriamente dita. Aqui, Raoni Marqs apresenta modelos e ferramentas clássicas de organização da história, como a lei dos três atos – divisão tradicional do enredo em início, meio e fim – e o monomito (a famosa “jornada do herói”, conceito popularizado por Joseph Campbell). O autor explica esses conceitos teóricos de forma acessível, frequentemente recorrendo a exemplos da cultura pop e referências de filmes, livros e jogos para ilustrar cada ponto. É nessa parte que o livro revela alguns dos chamados “segredos dos ninjas” da escrita criativa – uma expressão bem-humorada que Marqs utiliza para se referir a técnicas e princípios atemporais que ajudam o escritor a destravar portas da imaginação e conduzir a história como um mestre. A estrutura em três atos, por exemplo, é explicada com clareza, demonstrando como apresentar o conflito no primeiro ato, desenvolvê-lo no segundo e resolvê-lo no terceiro. Da mesma forma, a jornada do herói é apresentada como um modelo flexível, que pode guiar a evolução do personagem principal através de desafios, transformações e retorno – tudo isso de maneira desmistificada e aplicável às histórias do leitor. Nesta seção, o livro também enfatiza a importância de ritmo, clímax e resolução, mostrando passo a passo como organizar as ideias para que a narrativa tenha coesão do começo ao fim.
A Parte III funciona como um epílogo motivador, encerrando a obra em tom encorajador. Depois de fornecer inúmeras dicas práticas ao longo dos capítulos, Marqs usa a conclusão para lembrar o leitor de que escrever é um processo contínuo de aprendizado – e que, munido das “ferramentas ninja” adquiridas no livro, ele está pronto para tirar suas ideias do papel. Esse final reforça a mensagem central: qualquer um pode superar o medo da página em branco e escrever uma boa história, desde que conheça os fundamentos e não tenha receio de praticar.
Segunda parte do livro como escrever histórias
Linguagem e Estilo
Um dos aspectos mais marcantes de Como escrever histórias é a linguagem coloquial e bem-humorada empregada por Raoni Marqs. Diferentemente de manuais de escrita tradicionais, muitas vezes teóricos e formais, este livro adota um tom leve e próximo do leitor – “como um papo informal, repleto de piadas e referências”, o que torna a leitura extremamente agradável. O estilo do autor lembra muito o de uma história em quadrinhos, e não por acaso: o livro é recheado de desenhos, esquemas visuais e brincadeiras tipográficas que dão ao leitor a sensação de estar lendo uma HQ educativae. Essa abordagem visual e descontraída é altamente eficaz para transmitir a mensagem, pois utiliza recursos gráficos para exemplificar conceitos narrativos que poderiam ser abstratos ou intimidantes em outro formatoe. Em várias páginas, pequenas ilustrações e tirinhas cômicas representam situações que escritores iniciantes enfrentam – como o clássico bloqueio criativo diante da folha em branco ou a frustração de se perder no meio da trama – aliviando a tensão com humor e tornando o aprendizado mais divertido.
Além de divertida, a linguagem de Marqs consegue ser também didática e motivadora. O texto conversa diretamente com o leitor, reconhecendo as dificuldades do ato de escrever e demonstrando empatia pelos erros e inseguranças comuns de quem está começando . Por exemplo, o autor admite que é normal falhar nas primeiras tentativas e enfatiza que isso acontece com todo mundo (“fique tranquilo, acontece com todos” é uma frase que poderia muito bem sair das páginas do livro). Essa empatia transparece inclusive nas metáforas engraçadas que Marqs usa: ele compara nosso conhecimento prévio de histórias ao fato de já termos comido vários hambúrgueres (“burguis”) – mesmo sem saber cozinhá-los – portanto sabemos distinguir um bom de um mau, sugerindo que temos instinto para julgar histórias. E então argumenta que, para escrever histórias, precisamos aprender certos “ingredientes secretos” (os tais segredos dos ninjas) que tornarão esse processo mais fácil. Com analogias inusitadas e um vocabulário coloquial (por vezes regional e irreverente, como ao dizer “burgui do bão” em vez de “bom”), o livro provoca risos no leitor ao mesmo tempo em que esclarece conceitos importantes. Esse equilíbrio entre humor e conteúdo mantém o leitor engajado: aprende-se rindo, o que torna as lições memoráveis. Como observou uma resenhista, a escrita de Marqs é “muito divertida, capaz de arrancar boas risadas do leitor, e ao mesmo tempo delicada como um abraço quentinho” – ou seja, leve e acolhedora, sem deixar de ser informativa e inspiradora.
Outra característica digna de nota é a abundância de referências à cultura pop e exemplos concretos espalhados pelo livro. Marqs menciona filmes, séries, jogos e livros amplamente conhecidos para ilustrar pontos de teoria da narrativa, o que facilita a compreensão. Se ele fala sobre conceito de história, logo cita Star Wars, Dragon Ball, Pokémon, Veloses & Furiosos ou outros universos familiares para demonstrar como identificar a ideia central de uma trama. Se o assunto é construção de personagens, ele pode apontar heróis e vilões famosos da cultura pop para analisar o que os torna marcantes. Essas referências não só tornam a leitura mais divertida para fãs dessas obras, mas também servem para conectar a teoria à prática de forma palpável. O leitor consegue enxergar, através desses exemplos, como aplicar as dicas do livro na criação de suas próprias histórias. Além disso, essa estratégia reafirma a proposta inclusiva do guia: mostrar que histórias estão em toda parte – dos clássicos do cinema às HQs e videogames – e que todos nós, como consumidores de histórias, já temos um repertório do qual tirar inspirações. Essa abordagem coloquial e referencial aproxima o conteúdo do público jovem e iniciante, mas também agrada a escritores de qualquer idade que apreciem uma didática descontraída.
Avaliação e Conclusão

Em termos de conteúdo e propósito, Como escrever histórias cumpre brilhantemente aquilo a que se propõe. O livro consegue ensinar técnicas narrativas fundamentais de forma acessível e motivante, algo nem sempre fácil nesse gênero literário. Graças à combinação de explicações claras e bem estruturadas com um tom descontraído, o leitor termina a obra sentindo-se capaz de desenvolver suas próprias histórias do começo ao fim. Todas as etapas do processo criativo – desde ter uma ideia e desenvolvê-la, até estruturar a trama e revisar o texto – são abordadas com exemplos práticos e dicas acionáveis, eliminando o mistério que costuma cercar a escrita. Conforme a sinopse promete, Marqs realmente “pega o leitor pela mão” e mostra passo a passo como colocar a ideia no papel, sem deixar perguntas importantes sem resposta. Conceitos potencialmente complicados, como a jornada do herói ou a estrutura em atos, são explicados de maneira simples e objetiva, muitas vezes com humor, o que facilita a assimilação.
Um dos pontos altos ressaltados por quem leu é a clareza e completude dos ensinamentos. Tudo o que um aspirante a escritor precisa saber sobre trama, conflito, personagens e outros elementos está organizado no livro de forma didática – “tá tudo explicadinho aqui”, conforme elogio do escritor Vitor Martins, que ainda destacou: “a melhor parte é que o Raoni desenha até a gente entender!”. Essa observação resume bem a proposta da obra: explicar até o leitor entender, usando todos os recursos necessários, sejam eles textuais ou visuais, teóricos ou lúdicos. A criatividade de Marqs ao ensinar torna a leitura dinâmica e evita que o conteúdo didático se torne monótono.
Em relação a possíveis limitações, vale notar que o estilo extremamente informal pode surpreender quem espera um manual acadêmico tradicional. No entanto, esse claramente não é o objetivo aqui – e, para a finalidade de inspirar e destravar a criatividade, o tom coloquial mostra-se uma escolha acertada. Longe de prejudicar, a leveza da linguagem torna o livro mais convidativo a quem talvez se intimidasse com um guia de escrita convencional. Outro aspecto a considerar é que o foco do livro está nas bases universais da narrativa; escritores já experientes em teoria literária podem achar muitas das dicas familiares. Ainda assim, mesmo para esses, a apresentação inovadora do conteúdo e as referências atualizadas oferecem um frescor bem-vindo, servindo como uma ótima recapitulação dos fundamentos sob uma perspectiva divertida.
Concluindo, Como escrever histórias se revela uma leitura altamente recomendada para aspirantes a escritores e entusiastas da narrativa em geral. Raoni Marqs conseguiu criar um manual de escrita diferente de todos os outros: envolvente, engraçado e ao mesmo tempo riquíssimo em conteúdo. Ao terminar a resenha da obra, fica evidente que o livro atinge em cheio seu propósito principal de apresentar aos leitores o modo adequado (e prazeroso) de escrever uma história. Seja para quem nunca colocou uma ideia no papel, seja para quem já escreve mas sente dificuldades em estruturar suas tramas, este guia oferece um empurrão encorajador e esclarecedor. Como escrever histórias nos lembra, em última instância, que contar histórias é um ato quase mágico – mas um tipo de magia ao alcance de todos, desde que se conheçam os segredos (nem tão secretos assim) do ofício. Após dar o primeiro olhar e mergulhar nas páginas repletas de quadrinhos e dicas, o leitor provavelmente concordará que escrever pode ser tão divertido quanto ler uma boa história. E com Raoni Marqs como mentor literário, essa jornada de aprendizado torna-se uma aventura divertida, repleta de imaginação e, acima de tudo, possível de ser realizada pelo leitor-escritor em formação.
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Ao concluir a leitura de Como escrever histórias, foi inevitável lembrar da minha própria jornada ao escrever Entre a Toga e o Perdão. Tal como Raoni sugere — ao comparar a criação narrativa com o ato de espiar pelo buraco da fechadura —, também enxerguei, num primeiro momento, apenas um fragmento de história: o fio tenso de uma relação entre pai e filho, costurado entre acertos e desacertos. Era tudo o que eu podia ver, e tudo o que me bastava ver naquele instante inicial. No entanto, à medida que escrevia, a narrativa se expandia. O que antes era apenas uma casa, um nome e um silêncio, logo se entrelaçou à geografia sentimental de um Brasil profundo. A cidade onde meu pai nasceu, antes isolada no tempo e no mapa, passou a se ligar a tantas outras cidades do semiárido — lugares que, tal como os personagens, guardavam cicatrizes e esperanças. Assim, descobri que uma boa história não nasce pronta: ela se revela aos poucos, conforme o escritor se permite ir além do que vê à primeira espiada. E é exatamente isso que Raoni nos ensina: a olhar com atenção, a confiar no processo e a seguir escrevendo, mesmo que vejamos apenas um recorte da cena.
*Salatiel Soares Correia é engenheiro,administrador de empresas,mestre em energia pela Unicamp. Membro titular do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás. O autor publicou nove livros relacionados a diversos assuntos.