HQ de François Bourgeon mistura fantasia a um momento histórico e encanta os leitores pela arte e roteiro notáveis

Francisco Costa

Historiadores gabaritados, como os franceses George Duby e Jacques le Goff, contestam, mas o senso comum avalia a Idade Média como a Idade das Trevas (século 5 a 15, na Europa). Frisa-se que os motivos são seus supostos escassos avanços científicos e também pela repressão religiosa. Duby (“Idade Média, Idade dos Homens — Do Amor e Outros Ensaios”) e Le Goff (“A Civilização do Ocidente Medieval”) tratam o período, na verdade, como de ampla riqueza cultural — o Renascimento seria filho do período medieval — e avanço político, econômico e institucional. Trata-se de um período complexo e rico para a humanidade, pois dela se originaram vários trabalhos incríveis nas mais diversas mídias. Na literatura, com um misto de fantasia e ambientada em um mundo diferente, temos “O Senhor dos Anéis”, de J.R.R. Tolkien. No cinema há uma infinidade de obras de cavalaria, mas destaco um da qual gosto em particular, “Cruzadas” (“Kingdom of Heaven”), que traz a história (não como plano principal) do senhor de Jerusalém, Balduíno IV, o rei leproso. Nos games, a série com uma legião de fãs, “Dark Souls”, no gênero “dark fantasy RPG”.

Um período interessante e amplamente utilizado em romances é a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre Inglaterra e França. A história inclui a Revolta dos Jacques, com o líder camponês Guillaume Cale (1358) e a heroína Joana d’Arc (que morreu em 1431) — ambos franceses. E é nesse momento histórico que temos a obra-prima (sem medo de usar termo de forma vã) dos quadrinhos, “Os Companheiros do Crepúsculo”, de François Bourgeon, lançado entre 1984 e 1991. No Brasil, a HQ chegou em 2013, em um formato luxuosíssimo da Editora Nemo.

Realismo fantástico

A obra máxima de François Bourgeon, vencedor do Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, França, em quatro ocasiões, em suas 240 páginas é dividida em três livros: “O Sortilégio do Bosque das Brumas”, “Os Olhos de Estanho da Cidade Glauca” e “O Último Canto das Malaterre”.

Na trama, que se passa em algum ponto da Guerra dos Cem anos, tons de fantasia se mesclam ao período histórico retratado de modo milimetricamente preciso nos cenários, figurinos e personagens da história. A arte de François Bourgeon é um verdadeiro presente.

Dito isso, é fácil verificar que, apesar dos tons fantásticos, há um retrato fiel do cotidiano da época, explicitado em lutas entre nobres e plebeus, além de toda a violência presente durante a guerra (e também tem um tom de erotismo, em alguns momentos — o que evidencia a complexidade e diversidade da história). E fica ótimo de ver e ler pelo formato 24 x 32 cm (enorme para os padrões de quadrinhos).

Trama e personagens

Três personagens principais concentram a trama da história: os plebeus Mariotte e Anicet, cuja vila é destruída por soldados que estavam de passagem, e o cavaleiro de rosto deformado.

A moça é bela, mas era vista como pária e maltratada na vila em que morava, inclusive por Anicet, um jovem covarde que foi deixado para morrer após a passagem do grupo de cavaleiros. O terceiro elemento, que acaba por “acolher” os dois camponeses, é um homem misterioso e atormentado por seu passado.

O grupo é improvável, mas, ainda assim, se junta em uma jornada que vai fortalecer laços, em meio a camponeses mal informados com a destruição provocada pela guerra, pequenos duendes e servos das forças do mal. Mas, por fim, os homens ainda serão os piores algozes do trio.

François Bourgeon: notável quadrinista francês | Foto: Reprodução

Autor de múltipla temática

O quadrinista François Bourgeon nasceu em 1945, em Paris, e se formou como artista de vitrais. Sua paixão por desenhos alterou o curso de sua carreira.

Vale destacar que as primeiras ilustrações do artista foram publicadas em revistas na década de 1970 — quando a saga “Os Passageiros do Vento” foi serializada na revista “Circus”. Em 1979, se tornou reconhecida como uma das mais importantes séries em quadrinhos de sua época.

Os títulos de François Bourgeon variam de temas náuticos e medievais à ficção científica, com características intensas de violência e sexualidade. Suas obras épicas giram sempre em torno de personagens femininas fortes. Isa, Mariotte e Cyann são as heroínas de cada uma das séries “Os Passageiros do Vento”, “Os Companheiros de Crepúsculo” e “A Saga Cyann”.