Depoimento sobre a Casa de Bariani Ortencio — Andréa Luísa Teixeira (9)

17 outubro 2025 às 15h15

COMPARTILHAR
O Jornal Opção está publicando uma série de depoimentos de personalidades da cultura de Goiás sobre a Casa de Bariani Ortencio. Qual a importância da Casa de Bariani Ortencio e do escritor para a cultura goiana? O poder público deveria adquirir o imóvel para transformá-lo num espaço cultural de todos os goianos?
Andréa Luísa Teixeira
Pianista e pesquisadora da Emac-UFG

Em uma rua movimentada de Goiânia, onde o vento parece carregar lembranças e canções, repousa uma casa que é mais que moradia — é memória, literatura, música e manifesto.
Lembro-me de entrar na casa de Bariani Ortêncio a convite do mesmo para participar da Diretoria da Comissão Goiana de Folclore. Eu devia ter meus 28 anos de idade, e nessa época, investigava as Folias de Reis. Ao entrar em sua casa, Bariani me apresentou primeiramente, com orgulho, seu fogão à lenha, onde preparava a culinária goiana aos convidados em sua varanda transformada ora em auditório, ora em salão de festa, e em sua maioria, a grande sala de troca de conhecimento com sua acolhida amorosa.
Foi lá que conheci Ely Camargo pessoalmente e tantas outras personalidades da cultura goiana. A Casa de Bariani Ortencio guarda nas paredes, nos livros e nas sombras das árvores o espírito de um homem que dedicou a vida a traduzir a alma do povo goiano. Um espaço onde o tempo se transforma em palavra e melodia, e onde a cultura encontra abrigo. Eu sempre defini Bariani como “o guardião da palavra e da alma popular”. Olhava para ele e sabia que era daquelas pessoas que nasciam a cada cem anos.
Bariani Ortencio, escritor, compositor, folclorista e incansável defensor da cultura popular, construiu ao longo de sua vida um legado que ultrapassa fronteiras. Sua residência, situada no coração da capital, é o espelho fiel desse espírito: um lugar onde a literatura, a música e o afeto se entrelaçam com a paisagem urbana que ajudou a moldar o imaginário de Goiás.
A casa não é apenas o abrigo de um artista, mas uma referência da arquitetura moderna goiana. Projetada segundo os princípios da estética moderna, o imóvel se destaca por suas linhas puras, amplas janelas, integração entre interior e exterior e harmonia com a natureza — valores que simbolizam a utopia de uma cidade planejada para o futuro.
Trata-se, portanto, de um duplo patrimônio: artístico e arquitetônico. Enquanto o acervo literário e musical revela o pensamento de Bariani, a construção em si conta a história da modernidade urbana da capital. Preservar a casa é preservar também uma etapa fundamental da formação estética de Goiânia, um testemunho das ideias que moldaram seu desenho e sua identidade. Assim, o conjunto — casa, biblioteca, jardim e acervo — configura-se como um símbolo raro da convivência entre arte, urbanismo e memória.
Nascido em 1924, Bariani Ortencio fez da escrita e da escuta suas maiores devoções. Autor de dezenas de livros e canções, foi um dos grandes pesquisadores do folclore goiano, recolhendo causos, modas, rezas e expressões que revelam a grandeza do povo simples do interior.
Sua casa, repleta de manuscritos, discos, instrumentos e correspondências, é uma extensão de seu pensamento — um território onde o erudito se encontra com o popular, e onde a sabedoria do sertão dialoga com a modernidade da cidade.
Museu Bariani Ortencio e governo do Estado
Transformar esse espaço em Museu Casa Bariani Ortencio, sob a guarda do governo do Estado de Goiás, seria um gesto de reconhecimento e de amor. Seria perpetuar um espaço de encontro, de estudo e de inspiração, onde as novas gerações pudessem compreender que a cultura não é uma lembrança, mas uma forma de existir. O conjunto arquitetônico e intelectual da Casa de Bariani Ortencio tem valor que transcende as fronteiras da literatura. Sua biblioteca — uma das mais ricas do Centro-Oeste em cultura popular —, seus manuscritos e objetos pessoais compõem um arquivo vivo da identidade goiana.
Como arquitetura, a residência dialoga, e é ao mesmo tempo, vanguarda e memória, poesia de concreto e madeira. A casa, tal como sua obra, ensina que modernidade e tradição podem coexistir — que o novo não precisa apagar o antigo, mas iluminá-lo.
Por isso, a aquisição e musealização da Casa de Bariani Ortencio pelo Estado representam um ato cultural e civilizatório. O espaço, devidamente restaurado e aberto ao público, poderia abrigar exposições, saraus, atividades formativas e um centro de referência da cultura popular e da arquitetura moderna goiana. Seria um museu que canta — onde o som da viola se mistura ao desenho das linhas modernistas e à voz da história que resiste. Sua memória não seria passado, e sim presença.
Afortunados foram os que puderam ter Bariani Ortencio presente na vida e, consequentemente, presente de vida. Sou uma afortunada.
Andréa Luísa Teixeira é presidente da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás (Aflag), conselheira estadual de Cultura e titular do Instituto Histórico e Geográfico e Goiás (IHGG).