Nova exposição do artista goiano fala do mosaico de referências apreendidas ao longo da vida e das possibilidades para se viver de arte

Mateus Dutra: Mineiro de nascimento, goiano de criação, o artista tem uma formação artística versátil, usando de diversas técnicas e referências culturais | Arquivo pessoal
Mateus Dutra: Mineiro de nascimento, goiano de criação, o artista tem uma formação artística versátil, usando de diversas técnicas e referências culturais | Arquivo pessoal

“De vez em quando,
todos os olhos se voltam pra mim
de lá de dentro da escuridão,
esperando e querendo
que eu seja um herói”
Tom Zé

“Nós cobiçamos aquilo que vemos
todos os dias”
Hannibal Lecter
In: “O Silêncio dos Inocentes”

Yago Rodrigues Alvim

Na década de 1970, o cantor da Bahia Tom Zé cantou “Eu não sei de nada” e ia repetindo que não tinha chicote, que não podia fazer nada diante os olhos que se voltavam para ele, esperando e querendo que fosse um Deus. Era até fraco, inocente. E dessa toada, de menino manso, meio que desentendido, se espalhou em pormenores. É que só quem olhasse bem, entenderia que ali, na capa de “Todos os Olhos”, a coisa era doutra essência. O artista conseguiu, em meio à ditadura militar, lançar um álbum cuja arte trazia uma bolinha de gude no ânus. Mais parecia um olho, de quem vê bem.

Embalado pelo canto baiano, outro artista, cá do Centro-Oeste, criou seu “Todos os Olhos”. Não é disco não, mas tem lá toda sua canção. Mineiro de nascimento, goiano de criação, Mateus Dutra se fez artista e espalhou seu universo numa exposição que ganha a livraria Fnac por um mês.

O trabalho usa a técnica HPM, do inglês “hand-painted multiples”, que parte do conceito do artista intervir, com várias técnicas e pelas quais se interesse, sobre uma impressão distinta, a fine art, que tem o conceito de série limitada. Os artistas fazem impressões limitadas de determinada obra. A HPM possibilitou a Mateus uma impressão muito mais exclusiva. Em “Todos os Olhos”, diferentemente das impressões de trinta, cinquenta, 150 ou mais cópias possíveis, são apenas três cópias e cada uma recebeu uma intervenção exclusiva e totalmente autoral. Ele usou de intervenções em tinta, marcadores e colagens e fez do igual algo diferente e, por isso, único. Quebrou o padrão de reprodução. “É uma série única.”

Com oito retratos que compõem a série-única, “Todos os Olhos” fica em exposição na livraria Fnac até o dia 25 de julho
Com oito retratos que compõem a série-única, “Todos os Olhos” fica em exposição na livraria Fnac até o dia 25 de julho

O masculino, presente em “Todos os Olhos”, vem do universo do artista. “É um pouco de mim, do meu olhar. É sobre como enxergo as coisas e me enxergo. Eu, homem.” O olhar sobressalta com a sobreposição de camadas.

–– Está no DNA do meu trabalho a tinta sobre tinta, sobre desenho. Um traço fino, outro grosso. Um mais gestual, outro com mais violência e uma pincelada bem suave. Isso cria um jogo de perspectiva. No trabalho tem isso, principalmente nos olhos. Dá uma impressão 3D.
Mateus conta que se inspirou no disco de Tom Zé, pois existe algo que não é o que parece ser. Parece algo e, na verdade é outra. “Ele teve sua sacada e eu, como todo artista plástico, também trago minha visão, que é repleta de referências, um repertorio que contempla a cidade em que eu vivo, a história que eu tenho. Nós revertemos essas referências em arte”, diz.

Sua formação acadêmica foi versátil. “Eu sou um artista versátil.” Não é filho apenas do design gráfico e das artes visuais; também cursou história. Não parou aí. Corre atrás de coisas novas, para aprender sempre. Recentemente, tem trabalhado com bico de pena. E não só de técnicas diversas, como as experiências com marcador e spray em papel, ele tem suas referências de vida. Trabalhou como produtor cultural. Por 12 anos, trabalhou no Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadei­ros. Trabalhou com calungas e com outros grupos populares – catiras, manifestações do Divino Pai Eterno, Caçada da Rainha (Colina do Sul).

–– A cultura popular está dentro do meu trabalho com uma roupagem contemporânea, pois minha referência também passa pelo trabalho que fiz enquanto cenotécnico e stand manager da Quasar Cia de Dança. Eu tenho algo da Arte Contemporânea já destilada em mim, afinal trabalhei com o Henrique Rodovalho e ele é um dos maiores artistas que o Brasil tem.

Obra
Os muitos olhares de Mateus saltam à vista em seus retratos

Cola lambe-lambes originais nas ruas. Pinta murais. Tem todo um trabalho com intervenção urbana. É uma miscelânea de referências que amplia a paleta de possibilidades de Mateus no mercado de trabalho, enquanto o que pode oferecer a quem se interessa pelo seu trabalho, que quer adquirir sua obra, está começando uma coleção ou quer abrir uma galeria. Amplia sim. “O HPM é mais um tom na minha paleta de cores.”E não só: Mateus se atenta também à realidade, ao que está acontecendo pelo Mundo. Aprende técnicas novas e as coloca em sua produção.

Segundo ele, é preciso diversificar, sair de um lugar confortável. “Não sou um artista acomodado. Fico num eterno estado de desassossego. Sempre estou em pesquisa, procurando saber aonde meu trabalho pode chegar e aonde eu quero que ele chegue”, diz.
Que a vida não é fácil para artista algum em Goiás, é fato. Muitos preferem a segurança e estabilidade e se confortam, ficam estagnados. Viver de arte aqui é difícil. Por isso, Mateus instiga certas possibilidades:

1) Você precisa ter um networking nacional e internacional, se der. Goiânia tem que ser uma base logística. É no meio do Brasil. Se tiver um cliente em Manaus, daqui o frete vai ser bem mais barato que de São Paulo. Temos que perceber que não podemos depositar nosso futuro numa cidade de quase 2 milhões de habitantes, dos quais não tem 15% capaz de adquirirem sua produção. É limitar demais.

2) Neste novo mercado, em que a arte contemporânea se insere, com internet, e-commerce e tecnologia e comunicação cada vez mais dinâmicas e acessíveis, precisamos criar uma rede de conexões de networking e também de clientes e galerias fora da cidade, no caso, fora de Goiânia de forma que possamos viver de arte e levar a vida aqui.

Para a pocket-expo, a expectativa de Mateus é boa. “Todos os Olhos” é uma palhinha de para onde o trabalho está indo. O artista tem flertado com a cenografia, direção de arte e, ainda, a pintura em painel. Em cartaz por um mês na Fnac, que propõe uma abertura a artistas, músicos, do teatro, escritores que querem lançar livros, a exposição é também uma ação, um jeito de movimentar a agenda cultural da cidade. “Precisamos movimentar a cidade, precisamos mostrar. Não podemos apenas urtigar no ateliê, pois é parte do processo criativo. É preciso mostrar também, ter um feedback.”

Assim, a miscelânea de referências, o mosaico –– “HD ou Nuvem cheia de informações de vida, que vamos acessando”, como diz o artista ––, “Todos os Olhos” mostra a lucidez, também necessária, para a criação de uma persona, uma identidade própria. No caso, a arte de Mateus Dutra.