De Gaulle e a estratégia da vontade: o general que se tornou político. E o encontro com Kissinger (1)

22 outubro 2023 às 00h01

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Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Dois importantes atores do cenário político internacional encontraram-se em 1970, em um certo país europeu. O primeiro, destacado assessor do governo dos Estados Unidos; o segundo, presidente de uma importante nação europeia.
O presidente impunha-se não só pelo tamanho físico (1,96m), mas, sobretudo, pela postura austera típica de um civil. Ele que, grande parte da sua vida, foi militar. Findados os cumprimentos, o presidente, conhecedor das qualidades acadêmicas do assessor do presidente dos Estados Unidos, aproxima-se com uma indagação em mente:
— Por que não saem do Vietnã?
Surpreso com a objetividade do presidente, o assessor responde:
— Porque uma retirada súbita prejudicaria a credibilidade internacional.
— De onde?, volta indagar o presidente.
O assessor para, pensa e responde:
— Por exemplo do Oriente Médio.
Ao ouvir a resposta, o presidente exprime uma observação conclusiva:
— Que coisa mais estranha, eu achava que fossem seus inimigos (isto é, os soviéticos) que tivessem um problema de credibilidade no Oriente Médio.
No dia seguinte, logo depois do almoço, a conversa entre eles volta a acontecer por vontade expressa do anfitrião.
O presidente, sabendo que tinha diante de si um brilhante acadêmico de Harvard, levou a conversa para um assunto mais técnico, especificamente sobre os estadistas na segunda metade do século 19.

— Qual figura histórica desse período lhe impressiona mais?
— O chanceler alemão Otto von Bismarck, respondeu o assessor.
— Quais as qualidades que o senhor mais admirava nele?, indagou o presidente.
— Sua moderação, que infelizmente lhe faltou no acordo ao fim da guerra Franco-Prussiana de 1871, respondeu o assessor.
O presidente encerrou a conversa invocando as consequências desse acordo:
— Foi melhor dessa forma, pois nos deu a oportunidade de reconquistar a Alsácia.
A conversa acima aconteceu por ocasião da visita à França do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon, à França governada pelo general Charles de Gaulle. O assessor era Henry Kissinger.
Dentro dos parâmetros estabelecidos pelo autor para caracterizar a natureza dos seis estadistas como líder é preciso que identifiquemos, na biografia de cada um deles, atitudes que revelam a solidez do caráter, atos de coragem e algo imprescindível que dá rumo ao sistema político: a estratégia.
Gaulle: o início e a chegada ao poder
Para entender os atributos propostos por Henry Kissinger necessários para formação de um líder da estatura de Charles de Gaulle é preciso voltarmos a lupa de análise para os primeiros anos da vida deste, especificamente os anos de formação da ideologia do futuro presidente da França.

Filho de um professor de história, Henri de Gaulle, e de uma empresária do ramo têxtil, Jeanne Maillot, Charles de Gaulle era o terceiro de cinco filhos. A crença dos pais no nacionalismo influenciou diretamente a ideologia do futuro presidente da França. Desse modo, o sonho de uma França grandiosa constituiu-se na energia para as futuras lutas que travaria o jovem no transcorrer das suas duas vidas: a de militar e a de político.
Se possível fosse definir a trajetória pública do general De Gaulle em duas palavras, as mais adequadas seriam estas: rebeldia solitária. Ele foi rebelde quando se insurgiu contra uma figura mitológica do exército francês, seu superior na caserna e mentor no exército francês. Ele mostrou sua rebeldia na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando o triunvirato formado por Franklin Roosevelt, Winston Churchill e Ióssif Stálin apontava para uma direção que ia contra os interesses do seu país.
O lado solitário da personalidade de Charles de Gaulle se manifestou nos eventos em que ele liderou praticamente sozinho a Resistência Francesa a Hitler (claro que com forte apoio dos britânicos. Brasileiros lutaram lá, como Apolonio Carvalho). Além disso, ele agia praticamente sozinho mantendo uma certa distância do triunvirato Roosevelt-Churchill-Stálin que comandava as forças aliadas na Segunda Guerra Mundial e foram as figuras decisivas.
De Gaulle teve a sua liderança reconhecida pelos seus pares no transcorrer da Primeira Guerra Mundial. Esse reconhecimento resultou na sua condecoração com a Cruz de Guerra e com a Cruz de Cavaleiro da Legião de Honra. Em seus escritos, o autor conta que essa honraria se deve “à sua liderança nas ousadas missões de reconhecimento em que ele e seus soldados rastejavam pela terra de ninguém para escutar conversas nas trincheiras alemãs”.
No dia 2 de março de 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, o futuro presidente da França foi ferido e feito prisioneiro pelo exército alemão. Ele tentou, sem sucesso, fugir cinco vezes da prisão. De Gaulle foi mantido no cárcere, na Alemanha, até o armistício de 11 de novembro de 1918.

Após a Primeira Guerra Mundial, o coronel Charles de Gaulle (promovido em 1937) foi identificando-se, cada vez mais, com um movimento de cunho nacionalista por ele fundado, “França Livre”. Contribuiu para essa decisão a formação vinda do lar, em que o nacionalismo seria a mola propulsora da grandeza da França. Essa ideia sempre norteou as ações do filho do professor Henri de Gaulle. A crença no nacionalismo era defendida, com muito ardor, pelo jovem militar que se insurgia até contra seus superiores na caserna, quando defendia suas posições. Reproduzo a seguir um ato de rebeldia do general de brigada Charles de Gaulle contra o todo-poderoso marechal Pétain — que fora seu mentor na década de 1920. Enquanto Pétain se declarou favorável à rendição aos alemães e à formação do governo paralelo de Vichy, o futuro presidente da França era radicalmente contra:
“Ignorando a distância entre as suas patentes, o general De Gaulle se dirigiu ao seu superior (até ali, tido na mais alta estima) com uma fulminante condescendência. Asseverando que o cessar-fogo reduziria a França à servidão, De Gaulle retrucou, mordaz: ‘Para aceitar tal ato de degradação, não necessitamos do senhor, Monsieur le Marechal. Não necessitamos da vitória em Verdun. Qualquer um a teria conseguido’. O insulto a um só tempo completou a ruptura de De Gaulle com a França oficial e acelerou seus esforços para se estabelecer como chefe do movimento França Livre”.
Convém informar aos leitores que Vichy, cidade no centro do país, foi a capital do Estado Francês e também o nome dado ao governo comandado pelo marechal Philippe Pétain de 1940 a 1944. A chamada “França de Vichy”, formada pelo centro, o sul e o sudeste do país, funcionava como uma zona livre, por isso, portanto não hostil aos alemães.

Em julho de 1945, Pétain foi acusado de traição e complô contra a segurança da República. Julgado por um tribunal de guerra, foi condenado à pena de morte. Num ato de misericórdia, Charles de Gaulle, então presidente do governo de união nacional, decretou a comutação da pena em prisão perpétua. Philippe Pétain passou o resto de seus dias na prisão da ilha d’Yeu, onde morreu aos 95 anos, em 23 de julho de 1951.
O estilo arrojado do futuro presidente da França preenchia os quesitos de liderança que nos revela Henry Kissinger em seus escritos. De Gaulle exilou-se na Inglaterra com um propósito bem-definido: comandar um exército, inicialmente integrado por não mais que 7 mil homens dispostos a defender o ideário nacionalista que trazia do berço, expresso na defesa histórica da França. Ações dessa natureza revelam o caráter e a coragem do general. Caráter que não se vergou à vontade de seus superiores. Coragem para assumir, sem respaldo oficial, um movimento de 7 mil homens e tornar-se um vencedor, ante o avassalador poder bélico de seus adversários. Coragem, enfim, de romper com seus superiores em nome de um novo caminho que só ele enxergava. Muito da estratégia da vontade liderada por De Gaulle identificava-se com sua personalidade de sempre insistir, sem jamais desistir.
No entender de Henry Kissinger, “o comportamento desafiador do general De Gaulle tinha origem no conceito de grandeur [grandeza] que ele procurava reviver. Derivado, como vimos, da conduta francesa na busca por proeminência sempre prestes a ser conquistada”.
O nascer de um grande político
Quando estava exilado na Inglaterra, De Gaulle falava com muita frequência com a população de seu país, pelas ondas da BBC. O seu discurso sincero cativou mentes e corações de milhões de franceses. A partir daí, a figura do general De Gaulle foi cedendo importância à do político Charles de Gaulle: paulatinamente, o militar cedia espaço para nascer o grande estadista.
Para alçar-se a esse nível de reconhecimento popular e de seus pares, o futuro presidente fez-se respeitar perante os três líderes que ditavam os rumos da guerra: Franklin Delano Roosevelt, Winston Churchill e Ióssif Stálin.
A persistência do seu discurso político, focado na grandeza da França em primeiro lugar, agradou à sociedade do país de Balzac e Proust. Quando do seu exílio na Inglaterra, nos duros anos da Segunda Guerra Mundial, de Gaulle se impôs ante o governo paralelo de Vichy, o qual não se alinhava à ideologia nacionalista da França como grande potência. Nessa luta de franceses contra franceses ou melhor, do general De Gaulle versus o marechal Pétain, bem como no confronto entre De Gaulle versus o triunvirato de líderes responsáveis pela direção desse terrível conflito armado, o filho do professor de história ganhou todos os embates dos quais participou. Creio que a última batalha ganha pelo futuro estadista tenha sido assumir a primazia de retomar o controle de Paris, uma reconquista exclusivamente francesa, sem a ajuda dos aliados, como queriam os donos do poder.
Posto isso, creio ser oportuno reproduzir um trecho do discurso do general de Gaulle após a liberação de Paris, em 25 de agosto de 1945. Naquela ocasião, o orador saudava seus aliados. A estratégia da vontade mostrava-se vencedora perante o ideário nacionalista do estadista Charles de Gaulle, e o recado estava dado: a retomada de Paris fora uma conquista exclusivamente francesa (claro, há quem duvide e postule que, sem a Inglaterra e os Estados Unidos, De Gaulle não teria forças para assumir o comando, ao menos não sozinho, da França). Eis a resposta dada a um alto membro do Partido Comunista sobre o significado daquele momento:
“Como esconder a emoção que toma conta de todos os presentes, chez nous, em Paris, que se prontificou a se defender e que o fez sozinha. Não! Não esconderemos essa emoção sagrada e profunda. Alguns momentos estão além de nossas pobres vidas. Paris! Paris ultrajada! Paris arrasada! Paris martirizada! Mas Paris libertada! Libertada pelas próprias mãos. Libertada por seu povo com a ajuda dos exércitos da França, com a ajuda e a assistência da França inteira, dessa França que combate, da única França, da verdadeira França, da eterna França”.
A partir da retomada de Paris, o até então general De Gaulle sai de cena e dá passagem ao novo De Gaulle, o político que se fez estadista. O político com ideias próprias que soube se fazer respeitar pelo triunvirato Roosevelt-Churchill-Stálin.
Nessa nova fase de animal político, De Gaulle mostrou sua capacidade de se reinventar, pois os valores eram outros. Explico. Enquanto militar, imperava a rigidez burocrática em um contexto de absoluto respeito à hierarquia; como político, prevaleciam as emoções, os acordos, o convencimento.
Ciente desse novo desafio e do papel que a história reserva aos sujeitos políticos, De Gaulle viajou logo para Roma, a fim de se reunir com os franceses que voltavam da Argélia para se juntar às tropas aliadas. Em seguida, ele visitou os Estados Unidos, procurando melhorar as relações com seus aliados norte-americanos. Por fim, o futuro presidente da França foi até Moscou para se entender com Stálin.
Creio ser importante ressaltar que, em nenhum momento, De Gaulle se vergou à soberba dos vencedores. A estratégia da vontade, que orientava seu sistema político de governo, deixava um recado bem claro para o triunvirato que decidia o destino de vencidos e vencedores da guerra: a França jamais seria um ator coadjuvante.
Para melhor compreensão destes escritos, reproduzo um pequeno trecho que ajudará a entender o modo de agir do futuro presidente da França:
“Tendo desafiado Churchill, o líder que tornara sua notoriedade possível, De Gaulle não hesitou em atacar uma figura ainda mais formidável, o presidente Roosevelt, essencialmente sobre as mesmas questões: o destino dos territórios franceses reconquistados por unidades aliadas”.
A caminhada do general Charles de Gaulle rumo ao poder pode ser dividida em dois períodos distintos: antes e depois de ter sido, de fato, eleito presidente da França.
Em agosto de 1944, De Gaulle se vê fortalecido com a retomada de Paris. Em 13 de novembro de 1945, ele é nomeado presidente do Governo Provisório; resultado: a autoridade do poder central é restabelecida. Porém, em janeiro de 1946, acontece o inesperado: a renúncia do general de Gaulle por absoluto desacordo com a Assembleia Constituinte sobre o papel dos partidos políticos.
A esse respeito, Henry Kissinger aduz que “De Gaulle assumiria a liderança da França duas vezes em sua vida: a primeira, em 1940, para resgatar o país das consequências de uma catástrofe nacional; a segunda, em 1958, como o único meio de evitar a guerra civil”.
Salatiel Soares Correia é engenheiro, bacharel em Administração de Empresas, mestre em energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos temas política, energia, literatura e desenvolvimento regional. É colaborador do Jornal Opção.