“De como ser menino é bom, mas ser menino passarinho é melhor ainda”

01 março 2025 às 21h00

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Soninha Santos
Especial para o Jornal Opção
Encontrei um livro na estante que, só de olhar para a capa, delicadamente pensada por Suryara Bernardi, me proporcionou uma sensação muito boa. Parei o que fazia e voltei o meu olhar para a obra, de respeito, muito respeito mesmo. A ilustração da capa, que me fez de imediato estacionar as ideias, remete a um toque de tristeza, desamparo e solidão.
O livro, capaz de despertar tamanhos sentimentos, é “Menino Passarinho” (RHJ, 96 páginas), de Sueli Maria de Regino. Trata-se de uma dessas obras que fazem a mente girar, pensar e repensar e, depois, pensar novamente.
Pensar sobre o quê?

Principalmente sobre a vida e como ela é vivida. Sobre como é viver neste mundo, vasto, diversificado mas sobretudo desigual. Saber que as diferenças precisam ser vistas (revistas), analisadas, compreendidas e refletidas. Saber que grande parte da sociedade é desprovida de tudo, até mesmo do básico necessário para viver com dignidade. Como o mundo pode ser tão desigual, hostil, dantesco para uma parte considerável das pessoas que nele habitam!
Nesse contexto de dificuldades e de provações, tudo se torna mais difícil ainda quando o personagem é uma criança, sem chão, sem casa, sem família, sem tudo.
O livro em questão, de título poético, aborda a trajetória de um menino assim, com essas características de um ser que existe e precisa sobreviver sem nada. Seu nome é Curió, e vive em completa situação de abandono e solidão. Apesar do nome de passarinho, menino que é, merecendo ser livre, vive engaiolado nas teias invisíveis do abandono. Não conhece empatia, afeto, ternura.

Contudo, essa situação de desamparo diminui quando conhece uma professora que dava aulas em um assentamento e se vê acolhido por ela. Mesmo se tratando de uma temática dura, de crítica e social, Sueli de Regino consegue abordar essas questões de maneira simples, com um texto poderoso, uma linguagem clara e poética capaz de nos levar ao encontro desse “passarinho” Curió, desejoso de voar para além daquela sua existência solitária e caótica. A professora, solidária e amorosa, representa uma dessas pessoas que perdem o sono ao pensar no abandono e na solidão de tantas crianças sofrendo, passando fome, levando uma vida que, segundo a professora que o acolhe, “nem cachorro merecia”.
É esse o mundo que a autora nos apresenta neste livro. E a visão das dificuldades e dos desafios deste mundo é tecida pela percepção dessa criança, que se encontrava abaixo da linha da pobreza e morava perto do assentamento onde a professora lecionava é que ele, de longe observava, sem coragem de se aproximar. De fato, Curió nem era daquele lugar. Não pertencia a lugar algum. Sem casa para morar, dormia sobre um pneu em uma borracharia.
O limite entre a professora e o menino vai se rompendo aos poucos, lenta e carinhosamente, para só, a partir daí, Curió começar a enxergar a vida pela primeira vez com outros olhos.
Vale a pena chegar às páginas finais do livro e descobrir de que maneira o afeto, o carinho, a segurança e, principalmente, a ternura podem mudar toda uma vida, carregada, na verdade sobrecarregada, de incerteza, sofrimento e dor.
Fechei o livro, nessa minha nova leitura, para constatar a beleza do tratamento de um tema assim tão duro, com leveza, sem qualquer tom panfletário. Com arte.
Soninha Santos, crítica de literatura infantojuvenil, é colaborada do Jornal Opção.